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Notas sobre Notas – Tema VII: Do princípio notarial da imediação – Desembargador Ricardo Henry Marques Dip

Tema VII: Do princípio notarial da imediação
 
Des. Ricardo Dip
 
 
82.           No tipo do Notariado latino ou românico há um próprio que, em meio a variações de tempo e de lugares na atividade notarial, nunca deixou de reconhecer-se: trata-se da personalização do notário no mais característico de seu ofício.
 
                Pode mesmo falar-se em que o ato do notário é o notário em ato, ou seja, o notário na atuação pessoal de suas funções, especialmente a do exercício da jurisprudência determinativa, que lhe é a mais própria. E, desse modo, a personalização notarial corresponde a uma presencialidade ou imediação do notário em relação com os clientes e com a tarefa documentária a que se devota.
 
83.           Há, neste quadro, uma compresencialidade de pessoas (o notário, os clientes, testemunhas, circunstantes), fatos e coisas, que, embora não se exija para a integralidade da atuação notarial, deve reger algumas de suas partes (p.ex., pode pensar-se na outorga, na assistência pessoal, no conselho).
 
84.           Qual é o motivo de ser dessa imediação do notário, é dizer, de seu contacto direto com as pessoas, os fatos e as coisas a que concirna o caso jurídico que lhe é submetido para fins, frequentemente, de determinação e, de toda sorte, de documentação? Na sequência, qual o estatuto dessa imediação ou presencialidade?
 
85.           Propende amplamente a doutrina notarial a relacionar de maneira estreita o princípio da imediação ao da veracidade, porque, sem a captação da realidade sensível pelo próprio notário, sua percepção correspondente pelos sentidos internos e, sucessivamente, a apreensão e juízos intelectuais (nos quais juízos repousa propriamente a verdade), não seria possível o seguro conhecimento das coisas –certa cognitio rei−, fundamental para a exata compreensão das vontades contratantes e para captar os fatos e coisas objeto da narrativa documental do notário.
 
                Essa relação da presencialidade notarial com o princípio da veracidade constitui, pois, a ratio essendi da imediação, e abrange, incisivamente, o capítulo específico da fides publica. Calham aqui, a propósito, as, como é seu de hábito, bem proferidas lições de Rodríguez Adrados: o conhecimento notarial do assunto a documentar deve ser direto (imediato, de testemunho pessoal −sicut et testis), conhecimento que não se pode obter pelo exame de outros documentos ou pela manifestação de testemunhas –porque uma e outro, manifestação testemunhal e exame documentário, são próprios da função judicial.
 
                Daí o status de conaturalidade da imediação com as funções notariais, o que se confirma pela história mesma do Notariado latino.
 
86.           Parece oportuno considerar, em acréscimo, no conceito de presencialidade notarial, duas perspectivas relevantes.
 
                Primeira, a de lugar da compresença, que assinala a reunião real de pessoas, fatos e coisas em um lugar-onde (locus ubi). Toda eventual mediação desse locus (p.ex., o fato de um notário ter conhecimento das coisas por um médio pessoal ou virtual) recusa, realmente, o preenchimento da propriedade da imediação notarial: não pode ter-se por direto o que é indireto, nem haver imediação no que tem um médio.
 
                Segunda perspectiva: a de tempo da compresença. É de Baldo a sentença de que o notário não pode, em sua função própria, conhecer oficialmente o passado, nem, pois, perfazer documentos de præteritis. Coisa diversa é que haja prospecção dos fatos presentes ao notário ou ainda que se tenha fundamento do ato notarial em fatos ou coisas pretéritas, sem que se estendam, contudo, a fatos passados, o selo da imediação tabelioa e, pois, a eficácia de veracidade e, mais ainda, a de dar plena fé (fidem facere) pela só forma notarial do documento.
 
                Em resumo, o princípio da imediação notarial impõe a presença do tabelião no lugar e no tempo das pessoas, dos fatos e das coisas referentes aos assuntos de que trate no exercício de suas funções.    
 
87.           Nada obstante a relevância da prática de atos na presença local e temporal do tabelião −coram notariō−, isto não inibe o concurso de colaboradores.
 
                Na Alta Idade Média (cf. Bono, a que muito devem estas linhas), o mundum (a minuta do documento notarial) podia elaborar-se por um auxiliar do tabelião, diversamente do que se passava com a absolutio (a manifestação de consenso dos clientes) e a completio (a declaração tabelioa de que o documento era fiel ao estipulado pelos clientes e estava pronto para ser firmado), ambas estas atuações de absolvere et complere exigentes da imediação do notário. Por igual, depois de impor a cláusula de perfeição (complevi et absolvi), competia ao próprio tabelião a dimissio, ou seja, a entrega do documento ao destinatário.
 
                Também em alguma parte se permitia (p.ex., em Nápolis) que a escritura fosse redigida por um auxiliar do notário –um seu scriniarius (escrevente ou escrevinhador) ou mesmo por um discipulus do tabelião−, e concorreram ainda os scriptores circunstanciais, estes e aqueles com funções de mero amanuense, que, sem embargo, colaboravam com o ofício dos notários (em Huesca, v.g., havia os cooperadores iussione episcopi, ou seja, escritores comuns que, em dadas circunstâncias, ad hoc, exerciam funções notariais por ordem do bispo).
 
                Ainda que a falta ordinária de conhecimento da escrita haja impulsionado a adoção de meios extrínsecos para a validação dos documentos notariais (p.ex., duplicações dos instrumentos –cartæ divisæ− e autenticação por meio de selo –sigillum), é de todo conjecturável que a relativa decadência do valor do documento, nos séculos X e XI, na Alemanha e no norte e centro da França, levando à prática da corroboração por testemunhas e pelo próprio scriptor, seja tributária de algum excesso na dispensa da imediação notarial.
 
                Na Compilatio maior de Vidal de Canellas, obra que complementa a Compilação de Dom Jaime I, de Aragão (1247), indica-se o suposto normal (na dicção de José Bono) de os escrivanos iurados o públicos (“omnes bonos et honestos”, segundo o dialeto navarro-aragonês) tomarem nota, com “su mano propria”, do quanto relevante para os negócios jurídicos que autorizassem, devendo ainda, eles próprios, elaborar o documento ou carta, “en forma de público instrumento”. Mas esse suposto normal e preferível (tal o afirmara Vidal de Canellas) poderia ser dispensado, em caso de sobrecarga de trabalho, atribuindo-se a tarefa aos discípulos do notário, que, assim, elaboravam o documento “por mandamiento” do tabelião.
 
                Admite-se, pois, segundo a tradição, e com modo variado, secundum locos et tempora, a cooperação nas atividades notariais. O que não se admite, e isto avisa com razão Rodríguez Adrados, é que se tenha por “presença direta” do notário a que se realize por meio de seus prepostos: já aí não é mesmo caso de falar-se sequer em presença indireta, porque o que não há, neste quadro, é a presença do notário.

Confira abaixo os outros artigos da série.
Tema I: Ciência e arte notariais
Tema II: Ciência e arte notariais (sqq.)
Tema III: Da ciência do Direito Notarial: Primeira Parte
Tema III: Da ciência do Direito Notarial: Segunda Parte
Tema III: Da ciência do Direito Notarial: Terceira Parte
Tema IV: Dos princípios notariais
Tema V: Do princípio da rogação notarial– Primeira Parte
Tema V: Do princípio da rogação notarial – Segunda Parte
Tema VI:  Do princípio notarial da veracidade – Primeira Parte
Tema VI: Do princípio notarial da veracidade – Segunda Parte
Tema VI: Do princípio notarial da veracidade – Terceira Parte
Tema VI: Do princípio notarial da veracidade – Conclusão