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Notas sobre Notas – Tema VIII: Do princípio notarial da legalidade – Da objeção da consciência – Sétima parte – Desembargador Ricardo Henry Marques Dip

131.      Asserção clássica no direito notarial é a de que, tratando-se de ofício público, o notário não possa negar-se a prestá-lo, concretamente, salvo quando se apresente justa causa, assim diante (i) de ilegalidade ou (ii) de impedimento (lato sensu, abrangendo óbices pessoais, incluídos os transitórios, como dá exemplo uma enfermidade do notário, e óbices materiais, de que se pode ter ilustração com lugares de acesso perigoso −vidē, a propósito, a lista de indicações de Gimenez-Arnau).
 
132.      Neste quadro de prestação obrigatória de uma atividade notarial rogada, merece particular destaque o tema da objeção da consciência.   
 
             Versaremos aqui, seguidamente e de modo conciso: (i) o gênero da inobservância intencional de uma dada norma (tida por) jurídica, e nele (ii) o conceito especial de objeção da consciência, (iii) distinguindo-o da noção de objeção de consciência; (iv) os conceitos de consciência psicológica e de consciência moral; (v) o discurso prático em que se forma a consciência; (vi) aspectos peculiares à objeção da consciência pelo notário; encerrando com (vii) um excurso sobre o tema geral da resistência ou propositada inobservância de norma (ao menos) supostamente jurídica. 
 
133.     A dar-se fé ao relato bíblico, a ideia de não observância de uma norma de conduta é mais vetusta do que o homem: o pecado dos anges maudits foi o da desobediência −non serviam. E também nisto consistiu o pecado adâmico, de que se derivou a consequente mortalidade do homem. Por igual, em inúmeros mitos, a origem da morte está ligada a um erro de eleição, é dizer: à perda de uma oportunidade −com a escolha de uma experiência proibida (tal como no Livro do Gênesis) ou avessada à vontade de “entes superiores”.
 
          A escolha de uma conduta proibida −ou oposta de um império alheio superior− é recorrente na larga história dos homens. Assim, por exemplo, clássica é a desobediência que, ao edito do tirano Créon, na grande tragédia de Sófocles (que aqui refiro segundo a magnífica tradução de Guilherme de Almeida), desfia a corajosa Antígona. Enfrenta esta, para não observar o edito despótico, não só a tentação de pusilanimidade que lhe enseja sua irmã Ismene (“que terrível fim teremos se tentarmos, contra a lei, zombar da força de quem manda”), mas confronta a heroína também o “politicamente correto” (“não te envergonhas de ser diferente?”, pergunta-lhe Créon).
 
          Clássicos, não menos, são as resistências e até mesmo os tiranicídios estampados em várias obras de Lope de Vega −p.ex., El mejor alcaide el rey, Fuente Ovejuna e Peribáñez−, na qual última obra se lê que, voltando Peribáñez a sua casa, ali encontra sua mulher sendo assediada por uma autoridade, com quem se estabelece um duelo de morte: “Perdonad, Comendador; que la honra es encomienda de mayor autoridad”.
 
134.      Um ato de não observância intencional de uma dada norma jurídica pode ser, em seu gênero, (i) uma conduta ilícita, sem mais −graduável desde a mera infração até o delito−, (ii) uma desobediência civil, (iii) um ato revolucionário e (iv) uma objeção da ou de consciência. 
 
             Tratar-se-á, sempre, de conduta intencional, propositada, em que, sciens et volens, o agente viola a norma jurídica. Desconsideradas as imbricações possíveis destas categorias, o ilícito simplex (seja ou não um crime), especificamente, não se volta de modo direto contra uma norma por entendê-la imoral; já a desobediência civil consiste em um ato não violento, com motivação política, visando a mudanças legislativas ou de âmbito governamental (cf., brevitatis causa, John Rawls); diversamente, o ato de revolução dirige-se −com ou sem violência física− contra a integralidade de um sistema, que o revolucionário quer substituir (vidē Jorge Guillermo Portela).
 
             A objeção da e a de consciência são ambas recusas individuais e éticas a observar uma conduta que, em princípio, é tida por positivamente exigível, distinguindo-se essas objeções em que a primeira se funda em uma norma objetiva superior, a outra (a objeção de consciência), apenas na própria norma subjetiva de agir.
 
135.      A ideia de uma autonomia ou liberdade absoluta da consciência moral é o fundamento da objeção de consciência, que leva à predominância da norma subjetiva de agir, instituída pelo próprio agente, sobre a normatividade heterônoma: ou seja, o actante opõe a própria vontade contra a norma de fonte externa.
 
             Coisa diversa é a objeção da consciência, que outorga primado à norma objetiva de agir −cuja verdade a consciência moral do agente reconhece.
 
          Este discrimen parte da diferenciação entre liberdade de consciência e liberdade da consciência, tal o ensinamento de Pio XI, na Encíclica Non abbiamo bisogno, de 29 de junho de 1931. Neste documento, o Papa Ratti acusou os erros do fascismo italiano e afirmou: “la libertà di coscienza (è) maniera di dire equivoca e troppo spesso abusata a significare la assoluta indipendenza della coscienza…”.
 
136.           A “consciência moral” compreende a liberdade e a função normativa do discurso prático: é o último e conclusivo juízo da razão prática. Não se confunde, portanto, com a noção de consciência psicológica, quer intelectual, quer sensitiva (ou sentido comum). Essa consciência psicológica é a que remata na mera percepção dos atos das potências sensitivas ou na percepção que de si próprio tem o cognoscente. É coisa diversa, pois, da consciência moral, esta que é um juízo de caráter prático sobre o bem e o mal concretos, com império normativo para um agir humano singular.
 
             Tal ficou dito noutra parte, “a consciência moral é um ato deliberativo da razão prática, um juízo de aplicação de uma ciência a um caso, a relação entre um dado conhecimento e uma coisa −cum alio scientia− em ordem a uma determinada ação concreta”.
 
             A consciência moral sempre supõe a apreensão intuitiva dos primeiros princípios da razão prática (os da sindérese), o conhecimento próprio de razões superiores e inferiores, assim como as circunstâncias particulares do caso a que aplicar a ação ou proibição de conduta. Dessa maneira, a consciência moral nunca está dissociada da norma heterônoma, cujo conhecimento é, pois e sempre, indispensável ao juízo conclusivo do discurso prático.
 
          Em poucas palavras: a liberdade de consciência é mera manifestação de subjetivismo; a liberdade da consciência é expressão de observância de uma norma transcendente.
 
137.      A objeção da consciência, repete-se, é um juízo de conclusão de um discurso, que infere, de modo cognitivo, conforme a norma objetiva, e não segundo a arbitrária vontade do agente.  Desta maneira, dá-se na objeção da consciência um juízo concludente que aplica uma norma objetiva contra uma “falsa regra” ou legis corruptio que, em princípio, pareceria obrigatória.
 
          Diversamente, a objeção de consciência e a cega servidão da lei moralmente injusta participam ambas do um mero voluntarismo. Ambas se têm à conta de critério supremo; uma, a objeção de consciência, ao modo de um positivismo egótico do próprio agente; a outra, positivismo heterônomo; as duas, imanentes e desligadas de toda cognição possível de uma norma superior delas transcendente. Daí a conclusão de que, “para estes extremos, as normas não podem ser verdadeiras nem falsas; são apenas manifestação de uma vontade que não pode menos do que ser arbitrária; sua imanência é seu absoluto, no qual se dissolve todo possível fim transcendente”.
 
          Já a objeção da consciência não cria a norma aplicável; antes, reconhece-a e confirma-a, segundo o princípio universal do bonum faciendum, malum vitandum −agir o bem, evitar o mal.
 
          Em nosso próximo artigo, trataremos do discurso prático em que se forma a consciência moral e de questões pontuais referentes à objeção da consciência pelo notário.