CNB-CF – Que avaliação faz do 3 Congresso Notarial português realizado em Lisboa?
João Maia Rodrigues – Este Congresso serviu para marcar os 800 anos do notariado em Portugal. Para isso, dividimos o programa em três momentos: o passado, o presente e o futuro. Abordamos o passado, recordando alguns marcos fundamentais da nossa história com o auxílio de acadêmicos renomados. Trabalhamos o presente em formato de mesa redonda com debate e focamos a nossa atenção em três grandes temas: atos notariais; notariado e proteção; e, por fim, o tema do direito da família e das sucessões; Projetamos o futuro, apresentando o nosso novo Centro de Informação, Mediação e Arbitragem e convidando palestrantes estrangeiros para nos mostrarem o que na Europa e no mundo se está a fazer no notariado. A presença do presidente do Colégio Notarial do Brasil, Ubiratan Guimarães, quer na cerimónia de abertura, quer na palestra final, foi muito dignificante para o notariado português e a mim, pessoalmente, muito me honrou. A intervenção do desembargador Ricardo Dipp foi uma lição a que tivemos o prazer de assistir ao vivo. A eles em particular, e ao Colégio Notarial do Brasil, a Ordem dos Notários de Portugal ficará para sempre agradecida. Pretendíamos que fosse um evento inesquecível para todos os que quisessem participar. Entendemos que os objetivos foram claramente alcançados. Os momentos fundamentais do Congresso podem ser vistos na Justiça TV que fez a cobertura televisiva do evento (www.justicatv.com).
CNB-CF – Quais são as expectativas do notariado português em relação às novas atribuições conferidas (testamento vital, inventários, mediações e arbitragem)?
João Maia Rodrigues – A competência para formalizar o testamento vital e a procuração em matéria de cuidados de saúde é uma realidade, entre nós, desde 2012. Com efeito, com a Lei n.º 25/2012, de 16 de junho, entrou em vigor e colocou o notário como operador jurídico essencial nestes processos. Confesso que, sob o ponto de vista estritamente econômico, trata-se de uma competência sem grande retorno. Porém, sob um ponto de vista simbólico tem grande relevância. Desde logo, porque surgiu num momento fundamental para os notários portugueses, pois foi a primeira vez que, desde 2005, momento a partir do qual surgiu toda a legislação que dispensou a intervenção do notário e da escritura pública de quase todos os atos em Portugal, o legislador voltou a lembrar-se deste profissional e assumiu que a manifestação antecipada de vontade, consciente, livre e esclarecida, só fica garantida com a intervenção do notário.
CNB-CF – E quanto ao novo processo de inventário feito pelo notário em Portugal?
João Maia Rodrigues – Relativamente ao novo regime do inventário, que resulta da Lei n.º 23/2013, de 5 de março, em vigor desde setembro do ano passado, começo por esclarecer que não se trata daquele processo em que, havendo acordo, as pessoas podem fazer as suas partilhas nos cartórios. Essa já era uma realidade entre nós há muitos anos. Do que se trata agora é de todos aqueles casos em que as partes estavam obrigadas a recorrer ao Tribunal, quer por não estarem de acordo, quer por haver menores, incapazes ou ausentes em parte incerta. Este novo regime é uma autêntica “revolução”. No plano substantivo os notários já estavam habilitados como especialistas que são em direito matrimonial e sucessório. No plano processual é todo um “mundo novo” para estes profissionais. Agora, os notários portugueses têm a responsabilidade de fazer funcionar um regime processual que nos tribunais se arrastava por vários anos. Mas também a responsabilidade de não ter medo em afirmar que se o Estado decide retirar competências dos tribunais é nos notários, por força do seu particular Estatuto profissional, que deve começar a pensar. Em termos institucionais, este processo colocou o notário, novamente, no centro do sistema da justiça em Portugal. Em finais do ano passado fomos autorizados a constituir o Centro de Mediação e Arbitragem da Ordem dos Notários, que começa agora a dar os primeiros passos. Queremos que seja um Centro de referência em Portugal. Esta é uma iniciativa que vai ao encontro da sociedade em geral, colocando à disposição, através de um conjunto de mediadores e de árbitros qualificados, serviços de apoio à resolução de conflitos de forma célere, eficaz e econômica. Em matéria de novas competências, e no decurso deste nosso mandato, também conseguimos a atribuição para proceder ao procedimento de despejo. No fundo, trata-se do reconhecimento de que o notário, profissional liberal, é também, e primordialmente, representante do Estado. Para nós, as novas competências, ou novas funções, são sempre uma mais valia para qualquer profissão jurídica. Importante é que o paradigma do notariado se mantenha, ou seja, que o notariado continue a ser a profissão jurídica que mais se aproxima da função judicial.
CNB-CF – Como se deu o processo para a conquista destas novas atribuições?
João Maia Rodrigues – Antes de mais, é necessário esclarecer que a reforma de 2004, que Liberalizou o notariado em Portugal, repondo a nossa tradição histórica, foi resultado de um governo de coligação dos partidos: PSD/PP. Já o esvaziar das competências que se seguiu foi resultado dos dois governos anteriores a este, fruto de uma maioria absoluta de um só partido: o PS. Neste momento, o País voltou a ser governado por uma maioria daqueles dois primeiros partidos. Ora, aproveitando esta melhoria na conjuntura política, no meu entender, a equipe que lidero tem sabido conduzir adequadamente este “barco”, que se estava a afundar, a um “porto seguro”.
CNB-CF – Qual foi o processo de preparação para que os notários portugueses pudessem praticar com segurança estas novas atribuições?
João Maia Rodrigues – A Ordem dos notários assumiu este processo, sobretudo, em dois planos: por um lado, chamando a si a organização de várias iniciativas, como aulas, workshops, palestras, etc, que tiveram lugar ao longo dos últimos dois anos em todo o território nacional, tendo para isso convidado profissionais do direito de várias áreas, desde juízes, notários, advogados, solicitadores, e professores de direito, que integraram o leque dos vários participantes formadores; por outro, dotamos a nossa própria associação, e o País em geral, de plataformas tecnológicas adequadas para o sucesso destas novas atribuições, como, por exemplo, a plataforma dos inventários onde são tramitados todos estes novos processos que saíram dos tribunais.
CNB-CF – Como enfrentar o constante esvaziamento das funções notariais promovidas pelo Governo português nos últimos anos?
João Maia Rodrigues – Cabe a nós, notários e, particularmente, ao empenho e pro-atividade da equipe que lidero convencer os responsáveis políticos do poder dos nossos argumentos em prol de um notariado que é uma profissão jurídica fundamental para o Estado poder garantir a segurança e certeza jurídicas nas transações. A estratégia adequada, na esteira do que se está a fazer nos 22 países que fazem parte do CNUE (Comissão Notarial Europeia), passa pelas seguintes linhas de força: a) pela promoção do valor do documento autêntico; b) no desenvolvimento de novas ferramentas informáticas, quer para a promoção do documento autêntico no espaço europeu, quer para tornar possível a intercomunicabilidade dos notários portugueses com os seus congêneres europeus e brasileiros; c) no reforço e desenvolvimento de novas competências, particularmente aquelas que se pretenda retirar dos tribunais.
CNB-CF – Como as ações desenvolvidas pelo CNUE podem ajudar o notariado de Portugal no processo de reaver suas atribuições exclusivas?
João Maia Rodrigues – O CNUE tem por missão a promoção do notariado e a contribuição ativa em todo o processo decisório das instituições europeias que tenham a ver com os vários domínios da vida jurídica dos cidadãos e das empresas, com o acesso à justiça e com a proteção dos consumidores. A nosso ver, esta Associação de Notários da Europa tem desempenhado um papel fundamental e decisivo para a promoção do notariado e dos elementos constitutivos do seu Estatuto ao nível europeu. A importância do CNUE está na proximidade com as instituições europeias, e não tanto com as instituições nacionais, e na capacidade que tem de influir no processo decisório de muitas da mais recentes legislações como, por exemplo, o novo Regulamento Sucessório Europeu, que entrará em vigor em todos os Estados Membros em agosto de 2015. Porém, também nos parece que não mais será possível reaver algumas das atribuições que antes nos eram exclusivas. O próprio objetivo da União Europeia de consagrar um espaço comum de liberdade, segurança e justiça, onde coabitam vários sistemas jurídicos tão diferentes como os de matriz romano-germânica e os anglo-saxônicos, estes últimos que não conhecem o documento autêntico lavrado pelos notários como a pedra angular do sistema de justiça preventiva, torna muito difícil que isso possa voltar a acontecer.
CNB-CF – Quais os perigos da delegação das funções notariais aos demais profissionais liberais da área jurídica?
João Maia Rodrigues – É insustentável para a segurança jurídica que outros profissionais que não os notários possam praticar atos notariais sem formação, e sem disciplina, fiscalização e arquivo públicos. O notário para exercer o seu ofício teve de obter o título através de estágio e de provas públicas. Tem um particular Estatuto profissional em que destaco: a exclusividade para o exercício das funções; imparcialidade e equidistância relativamente aos interesses das partes; um arquivo que é público; disciplina e fiscalização por parte do Judiciário; etc. Em Portugal, o atual sistema impede que um notário, mesmo sendo advogado, e muitos o são porque fizeram o estágio próprio de advocacia, possa praticar atos próprios dos advogados. Inversamente, um advogado, que não é notário, pode praticar alguns atos notariais. Isto não faz qualquer sentido. Para além do que já foi dito, temos de continuar a trabalhar para exigir do Ministério da Justiça e do Parlamento português a clarificação do campo de atuação de cada uma das profissões jurídicas em Portugal. O atual sistema é inseguro, confuso e paradoxal.
CNB-CF – Como avalia a atual situação do notariado brasileiro?
João Maia Rodrigues – Tenho acompanhado o notariado brasileiro sobretudo nos últimos três anos e gostaría de destacar algumas ideias: primeiro, que estou convencido que o processo de dispensa da escritura pública que ocorreu em Portugal, e que na Europa tem seguidores, no Brasil não vai ocorrer. Com efeito, o valor da paz jurídica em um País da dimensão e com as caraterísticas próprias do Brasil não pode ser colocado em causa por medidas que geram insegurança e o aumento da litigiosidade nos tribunais. Segundo, também conheço o longo processo de exames que são necessários para chegar à carreira de notário no Brasil. Já tive a oportunidade de manifestar a minha posição de discórdia sobre alguns dos seus aspectos, muito em particular, sobre a primeira prova de todas, que é realizada através de um teste objetivo e que versa sobre muitas matérias do Direito que ao notariado não dizem respeito, como o processo penal, por exemplo. Sei que o enfoque que é dado nesse teste, e nessas matérias, muitas vezes não tem qualquer relação com o notariado, o que, na prática, pode levar a que os melhores candidatos para o exercício do notariado, meramente por falta de sorte nas questões selecionadas para o exame, fiquem de fora do concurso e se afastem de vez da carreira notarial. Finalmente, quero realçar a importância que tem, em qualquer País, uma associação credível e forte para o desenvolvimento do notariado. Uma associação que consiga identificar os principais problemas institucionais. Que tenha um plano estratégico adequado para o melhor da profissão. Ora, é por tudo isso, que o Colégio Notarial do Brasil desempenha uma função fundamental para o notariado brasileiro. Conheço a sua atual liderança na pessoa do meu amigo, Ubiratan Guimarães. São públicas as linhas de força do seu pensamento para a instituição. Sou testemunha do trabalho por ele desenvolvido em prol da causa notarial. Assim sendo, tenho de concluir serem boas as perspectivas para o futuro do notariado brasileiro.