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Usucapião administrativa: a experiência peruana

O registrador peruano Martin Luque visitou a sede da Arisp, no último dia 4 de setembro, e falou ao iRegistradores sobre a usucapião administrativa que regularizou a maioria das favelas nos arredores de Lima e de outras grandes cidades do Peru.



Concedendo entrevista ao presidente Flauzilino Araújo dos Santos e ao diretor Sérgio Jacomino, Luque nos dá uma visão do registro peruano e aponta para a experiência de titulação em massa ocorrida naquele país.



P – Gostaríamos de conhecer a experiência peruana com a usucapião administrativa.



Martin Luque – Usucapião é uma figura que existe no Direito peruano desde sempre, mas não era um instrumento muito utilizado na prática por se tratar de um procedimento judicial demorado – levava dois ou três anos – e muito caro para a maioria das pessoas. Em 1996, o governo criou a Cofopri – Comissão de Formalização da Propriedade Informal. Esse organismo estatal tinha a finalidade de outorgar títulos de propriedade para moradores das zonas periféricas da cidade. No Peru, como na maioria dos países do terceiro mundo, temos o problema da superpopulação nas cidades. Até os anos 1940 tínhamos cidades pequenas, mas a população do campo migrou para as cidades e criou favelas nas regiões metropolitanas. Com o tempo essas favelas foram urbanizadas e, hoje, essas comunidades representam mais da metade da população das grandes cidades. Em Lima, por exemplo, uma cidade de oito milhões de habitantes, mais da metade são moradores dessas comunidades. O problema dessas pessoas era como ter um título de propriedade. No entanto, levar ao Judiciário quatro milhões de pessoas para ter um título de propriedade seria muito complicado. Era preciso que o sistema jurídico encontrasse uma forma de tornar isso possível. Ou se criava um Poder Judiciário maior, ou se fazia um procedimento administrativo, e o governo escolheu a via administrativa. Cofopri tem um departamento técnico com engenheiros agrimensores e também faz o trabalho de emitir o título de propriedade. As pessoas que querem seu título de propriedade fazem uma usucapião administrativa. O procedimento do Cofopri exige apresentação do documento de identidade, prova de que o requisitante mora no local há mais de dez anos, recibos de pagamentos de água e luz, testemunhas, declaração jurada de que a pessoa não tem litígios com outros moradores, etc. O órgão avalia essas provas e publica edital no jornal do governo El Peruano (Diário Oficial). Se não houver reclamação a respeito de algum direito vulnerado, a Cofopri emite o título de propriedade.



P – Não existe um procedimento notarial para a usucapião administrativa?



Sim. No Peru temos três procedimentos. O procedimento judicial, que pouca gente utiliza; o procedimento administrativo da Cofopri, que só pode ser usado para a periferia das cidades e com a aprovação das prefeituras. Cofopri foi criada em 1996, portanto foi também um instrumento político do governo. No Peru, como em outros países, o governo procura obter apoio da população outorgando títulos de propriedade. Isso aconteceu no Peru e quando o governo de Fujimori terminou houve disputas sobre a Cofopri, que era e será sempre um instrumento político, mas quem tinha competência para outorgar o título da propriedade era a prefeitura. Hoje o Cofopri só pode outorgar títulos com permissão das prefeituras. Mas, como dizíamos, existe o procedimento notarial, criado há uns 20 anos, que é a terceira via que pode ser utilizada em qualquer parte da cidade, ao contrário do Cofopri. Os notários podem outorgar um título de propriedade em qualquer lugar do país, de acordo com sua competência. Há discussões sobre essa faculdade que têm os notários porque, no Peru, de acordo com a Constituição, a função jurisdicional somente pode ser exercida pelo Poder Judiciário. Alguns dizem que outorgar um título não é propriamente uma função notarial. Mas muitas vezes a realidade é mais forte que as leis. Na prática funcionou porque todo mundo prefere ir ao notário.



P – Qual o procedimento utilizado pelo notário para outorgar o título de propriedade?



Martin Luque – Existe uma lei especial. A pessoa que deseja o título de propriedade tem que apresentar um requerimento, testemunhas de que mora no local há dez anos e outras provas. O notário publica editais, faz medições de áreas, fala com os vizinhos, etc. Se depois da publicação do edital não existir nenhuma oposição, o notário outorga o título da propriedade. O procedimento é parecido com o da Cofopri. No Peru, a formação dos notários é para elaborar contratos, negócios jurídicos, mas eles ainda não entendem bem a função de um direito novo, embora sejam privatizados: eles têm um cartório, independência e autonomia para trabalhar. Na prática, a usucapião no Peru tem se convertido numa forma para resolver todos os problemas de falta de título.



P – Esses títulos outorgados representam o que o De Soto propunha no seu livro, ou seja, as pessoas passam efetivamente a integrar a economia formal? Os bancos aceitam esses títulos como garantia? As pessoas passam a ter um ativo financeiro?



Martin Luque – De Soto representou uma grande influência para crescimento do registro da propriedade no Peru. Na década de 1980 ele escreveu o livro O outro caminho: na época da guerrilha aparecia uma outra via para sair da pobreza sem ser o caminho da revolução, que era o acesso à propriedade. Se o acesso à propriedade era importante para sair da pobreza, o governo entendeu que deveria reforçar o registro da propriedade e criou o registro da propriedade informal, que era um registro para os pobres. Por essa via foram regularizadas milhões de propriedades e creio que isso foi bom, mas não posso dizer que isso significou a melhora do nível de vida dessas pessoas ou fez com que entrassem para a economia de mercado como atores importantes. A pobreza hoje é parecida com a que havia anteriormente na periferia das cidades. Não existe uma relação causal entre ter um título de propriedade e subir na escala social.



P – Esse registro predial, para a população pobre, funcionava de forma autônoma e separada de outro registro?



Martin Luque – Sim, mas agora já não funciona assim. Como o registro da propriedade informal era um instrumento político, cobravam taxas muito baixas, mas agora há somente um registro.



P – Depois dessa emissão de título e primeiro registro por taxa simbólica, ao ser transferido um desses imóveis, o comprador registra seu título ou acontece a volta à informalidade?



Martin Luque – Acho que a população tem entendido que é importante o registro. Por isso, no futuro, o Peru poderá ter um sistema de registro constitutivo parecido com o do Brasil.



P – Que porcentagem das propriedades estão registradas?



Martin Luque – Cerca de 70% a 80% das propriedades estão registradas. Por isso acho que o discurso de De Soto não faz muito sentido porque a maioria das propriedades das cidades grandes já está registrada. Se o registro da propriedade é o caminho para o desenvolvimento econômico de um país isso deveria ter acontecido no Peru.



Publicado por: Fátima Rodrigo



Fonte: IRegistradores