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12/06/2023 – Revogação de doação por ingratidão: Uma análise doutrinária sobre as implicações jurídicas e a recente decisão da corte alemã

Advogada, professora e autora da coluna German Report do Portal Migalhas), Karina Fritz, conversou sobre o tema com o CNB/GO

A recente decisão proferida pela Corte Infraconstitucional Alemã, Bundesgerichtshof (BGH), sobre a revogação de doação por ingratidão do donatário trouxe à tona uma controvérsia doutrinária de relevância. O caso em questão envolveu uma doação de imóveis realizada por uma mãe aos seus três filhos, com a reserva de usufruto vitalício para a genitora. No entanto, após desavenças familiares e atitudes questionáveis por parte de um dos filhos, a mão decidiu revogar a doação e buscar a restituição dos bens. O desfecho dessa disputa ganhou destaque ao ser levado à Corte na cidade de Karlsruhe, devido sua significação fundamental.

A revogação de doação por ingratidão é um tema que envolve questões jurídicas complexas e suscita debates importantes no âmbito do Direito Civil. Diante disso, o Colégio Notarial do Brasil – Goiás (CNB/GO) buscou aprofundar-se nas nuances desse tema por meio de uma entrevista exclusiva com Karine Fritz, mestre e doutorada em Direito Civil, secretária-geral da Deutsch-lusitanische Juristenvereinigung (Associação Luso-alemã de Juristas) ex diretora científica da Revista do Instituto Brasileiro de Estudos sobre Responsabilidade Civil (IBERC) e autora da coluna German Report do Portal Migalhas, que trouxe algumas questões sobre os obstáculos e possibilidades de revogação, regras do código civil, limitações fiscais e muito mais.

Confira a entrevista na íntegra:

CNB/GO: Quais são os benefícios fiscais da doação de bens?

Karina Fritz: A doação é uma liberalidade, movida por vezes por motivos altruísticos. A lei, porém, não incentiva, em princípio, o ato de doar. Ao contrário: ela se preocupa em não deixar o doador desamparado, impedindo-o de doar todos os seus bens, e em proteger o doador contra uma decisão precipitada, daí exigir forma legal para o contrato de doação. No plano fiscal, afora os incentivos fiscais de dedução do Imposto de Renda para doações com finalidades sociais e culturais, não há necessariamente incentivos fiscais para o sujeito doar partes de seus bens. Em muitos estados, a exemplo de São Paulo e Rio de Janeiro, não há diferença na alíquota entre transmissão por doação e transmissão causa mortis. Alguns estados, porém, fazem esse incentivo fiscal e cobram alíquotas mais baixas para a doação. Em Alagoas, por exemplo, cobra-se 4% nas transmissões causa mortis e apenas 2% nas transmissões por doação, o que, sem dúvida, estimula a doação.

CNB/GO: Quais atos autorizariam a revogação da doação?

Karina Fritz: A doação é um negócio jurídico por meio do qual o doador, por espírito de liberalidade, se obriga a transferir bens ou direitos de seu patrimônio para o donatário, que pode aceitá-lo ou não, embora, via de regra, como as doações são gratuitas, i.e., sem encargos, as pessoas aceitem de plano a doação. Por uma questão de segurança jurídica, toda doação é, em regra, irrevogável. Isso significa que o doador não pode pedir a restituição do bem ao bel prazer, nem mesmo por dificuldade financeira. A lei brasileira só prevê duas hipóteses de doação: por ingratidão do donatário e por inexecução do encargo (art. 555 CC).

 CNB/GO: Quando ocorre a revogação por inexecução do encargo?

Karine Fritz: Quando se trata de doação modal, ou seja, feita com a imposição de encargo/ônus ao donatário, este deve executar o encargo, seja ele estabelecido em benefício do doador ou de terceiros. Esse dever torna a doação onerosa e é juridicamente exigível. Por isso, o art. 562 CC diz que a doação onerosa pode ser revogada por inexecução do encargo. Se não houver prazo para o donatário cumprir esse dever, o doador pode notifica-lo para que o faça dentro de um prazo razoável, sob pena de configuração da mora do donatário, causa que justifica a revogação por descumprimento do encargo assumido.

CNB/GO: E quando ocorre a revogação por ingratidão do donatário?

O Código Civil é, a meu ver, muito tímido no que diz respeito à revogação da doação por ingratidão, pois só permite o desfazimento do ato se o donatário atentar contra a vida ou cometer homicídio doloso contra o doador, cometer ofensa física, caluniar ou injuriar gravemente ou, ainda, se, podendo, recusar-se a prestar alimentos ao doador. A revogação também pode ocorrer quando o ofendido for cônjuge/companheiro, ascendente, descendente ou irmão do doador (art. 558 CC).

Tratam-se, portanto, de situações graves, a maioria tipificada como crime no plano penal, mais precisamente como crimes contra a pessoa, ou seja, crime contra a vida, lesão corporal e a honra. Como o legislador esqueceu de mencionar a difamação, a jurisprudência “ampliou” o rol para incluir a hipótese em que o donatário imputa ao doador fato ofensivo à sua reputação, o que é, em tese, delito mais grave que a injúria e, portanto, por maior razão, deve também autorizar a revogação da doação.

O problema é que inúmeras outras situações de ingratidão ficam de fora do âmbito de incidência do art. 557 CC, como, por exemplo, o desprezo, abandono, maus-tratos, cárcere privado, ofensa grave que não configura crime contra a honra, pedido de interdição manifestamente infundado, denúncia ou queixa-crime infundada, exclusão deliberada da empresa familiar, o que constitui, na prática, ato gravíssimo de ingratidão. Aliás, no mundo empresarial podemos constatar inúmeras situações de ingratidão que não são abarcadas pelo art. 557 CC.

CNB/GO: Poderia dar um exemplo concreto?

Karina Fritz: Além daqueles exemplos acima já mencionados, que não justificariam a revogação da doação se fizermos uma interpretação literal do art. 557 CC, houve um caso recente, que comentei na minha coluna German Report, publicada quinzenalmente no Migalhas, no qual o Bundesgerichtshof (Corte alemã equivalente ao Superior Tribunal de Justiça) reconheceu a ingratidão de um filho que tentou – após receber vários imóveis da mãe em doação – cancelar o direito de usufruto gratuito e vitalício que ela possuía em um deles. As circunstâncias em que isso aconteceu – v.g. às escondidas, contrariando a vontade da mãe e das irmãs – levaram a Corte a reconhecer que, de fato, naquela situação ele foi extremamente ingrato com a genitora, que revogou a doação.

Por isso, penso que o art. 557 CC deve ser lido como um rol exemplificativo, como propõe o Enunciado 33 da I Jornada de Direito Civil, permitindo que outras situações de grave ingratidão permitam a revogação da doação. Isso não causa insegurança jurídica, como dá provas o exemplo da Alemanha. Além do mais, essa solução é mais consentânea com a realidade social contemporânea e com a ratio do sistema jurídico, que tem a clara e legítima preocupação de proteger o doador, que se empobrece para beneficiar o ingrato. De fato, é para proteger os interesses do doador que a lei, por exemplo, dificulta a celebração do contrato, exigindo a obrigatoriedade de forma (art. 541 CC) e decretando a nulidade da doação universal (art. 548 CC); flexibiliza a força vinculante do pacto, possibilitando a revogação (art. 555 CC) e a estipulação de cláusula de reversão (art. 547 CC), bem como impõe uma responsabilidade atenuada para o doador ao isentá-lo, em regra, da responsabilidade por evicção, vício redibitório e juros moratórios (art. 552 CC). Então, penso que devemos proteger de forma mais eficaz aquele que se empobrece para beneficiar alguém, que mais tarde se revela indigno.

CNB/GO: O Código Civil de 2002 trouxe mudanças em relação a isso?

Karina Fritz: Em relação ao Código Civil de 1916, as inovações foram poucas no que diz respeito à revogação. O art. 1.183 do Código Beviláqua já continha essa estrutura normativa estreita de só considerar casos de ingratidão os crimes contra a vida e a integridade psicofísica, além da hipótese de abandono alimentar. O Código atual se limitou a acrescentar o crime de homicídio no inciso I do art. 557 CC e de ampliar o rol dos ofendidos (cônjuge, ascendente, descendente ou irmão) no art. 558 CC. Mas esqueceu, por exemplo, de incluir o companheiro como potencial vítima e de prever a difamação como hipótese de ingratidão. Portanto, em linhas gerais, a estrutura normativa é a mesma, cabendo agora ao intérprete adaptar o dispositivo legal aos novos tempos.

CNB/GO: Quais as possibilidades em que não é possível realizar a revogação?

Karina Fritz: O art. 564 CC elenca as hipóteses nas quais a lei não permite a revogação por ingratidão: as doações puramente remuneratórias, as oneradas com encargo já cumprido, as que se fizerem em cumprimento de obrigação natural ou as doações antenupciais. O inc. I trata da doação remuneratória, aquela feita para compensar serviços prestados pelo donatário, sem que exista entre as partes, porém, uma contraprestação exigível. Esse tipo de doação tem um caráter híbrido, pois o legislador a considera onerosa até o valor do serviço prestado e gratuita na parte que exceder. Devido à natureza remuneratória/onerosa da doação, a lei a considera irrevogável. Atente-se, porém, que o legislador só impede a revogação da parte onerosa, ou seja, até o valor do serviço prestado. A parte excedente, contudo, por consistir em liberalidade, poderá ser revogada por ingratidão. Exemplo: se alguém doa um imóvel de R$ 100 mil para compensar um médico por um tratamento feito, que normalmente seria remunerado por R$ 60 mil, ele só poderá revogar por ingratidão até o limite de R$ 40 mil.

No caso das doações onerosas, previstas no inc. II, a lei impede a revogação por ingratidão quando o encargo já foi cumprido pelo donatário. Ou seja, o cumprimento do dever imposto impede a revogação do ato, ainda quando o donatário incorra em grave ingratidão. A ratio por trás da proibição de revogação de doação feita em cumprimento de obrigação natural (inc. III) é a mesma que rege a obrigação natural: embora a obrigação natural seja um débito desprovido de exigibilidade, como a dívida de jogo não legalizado ou a dívida prescrita, uma vez pago o débito através de doação, não pode o credor (doador) pedir a devolução do indébito.

CNB/GO: Os herdeiros podem propor ação de revogação da doação?
Karina Fritz: Via de regra: não. O direito de revogar a doação é um direito personalíssimo e, enquanto tal, é intransmissível aos herdeiros. Eles só podem prosseguir na ação revocatória iniciada pelo doador quando este falece durante o processo, como determina o art. 560 CC. A única exceção à regra é no caso de homicídio doloso do doador e desde que este não tenha perdoado, ainda em vida, o donatário assassino. Esta é a hipótese prevista no art. 561 CC. Nos termos dos arts. 1.829 e 1.839 CC, são herdeiros legítimos os descendentes, ascendentes, cônjuge/companheiro e os colaterais até o quarto grau. Dessa forma, qualquer um deles, na omissão dos mais próximos, pode promover a ação de revogação da doação.

CNB/GO: Existe um prazo decadencial para revogação de doação por ingratidão?

Karina Fritz: Sim, o art. 559 CC diz que a ação de revogação – por ingratidão ou inexecução do encargo – deve ser proposta do prazo de um ano, a contar de quando o doador tenha conhecimento do fato legitimador do desfazimento do negócio. Mas o STJ tem entendido que o prazo ânuo do art. 559 CC só se aplica aos casos de revogação por ingratidão, já que as hipóteses de descumprimento do encargo, consistindo em descumprimento de um dever jurídico, atraem a incidência do prazo prescricional ordinário, de 10 anos, do art. 205 CC.

CNB/GO: O doador pode transferir todos os seus bens para o donatário?
Karina Fritz: Não, o art. 548 CC é expresso ao declarar nula a chamada doação universal, i.e., a doação de todo o patrimônio do doador. O escopo da norma é, evidentemente, proteger o doador, mais precisamente garantir-lhe um mínimo existencial que assegure sua subsistência e dignidade. Mas a doação será válida – ainda que englobe a totalidade dos bens – se a subsistência do benfeitor ficar garantida no caso concreto. É o que ocorre quando o doador doa todos os seus bens, gravando-os com cláusula de usufruto vitalício, como acontece com frequência no direito de família, quando os pais, para evitar desavenças futuras, partilham em vida a totalidade dos bens entre os filhos, mas se reservam o direito de usufruto vitalício sobre a totalidade ou parte dos bens. Outro exemplo é quando o doador se desfaz de todo os seus bens, mas possui renda mensal suficiente para uma vida digna. Nesses casos, a doação é válida.

CNB/GO: É possível prever a revogação por ingratidão no contrato de doação?

Karina Fritz: Essa é uma questão polêmica. Considerando que a revogação da doação é uma situação excepcional, que só tem sido admitida nas estreitas hipóteses do art. 557 CC, conclui-se que seria nula eventual cláusula que previsse a revogação por ingratidão fora das hipóteses lá previstas. Porém, a meu ver, isso deveria ser permitido, pois entendo que todas as situações de ingratidão grave devem justificar a revogação da doação. Mas isso ainda precisa ser discutido e aprofundado na doutrina e na jurisprudência. O que não se admite, porém, é renúncia antecipada do direito de revogar a liberalidade por ingratidão, como deixa claro o art. 556 CC. Mas essa é outra situação.

CNB/GO: Como os notários podem orientar os doadores e donatários sobre as condições e efeitos da doação, incluindo as possíveis hipóteses de revogação?

Karina Fritz: Na prática, é importante orientar as partes de que, nos termos do art. 541 CC, a doação é um contrato formal, devendo ser adotada a forma escrita, por instrumento particular ou escritura pública. No caso de imóveis com valor superior a trinta vezes o salário mínimo, o art. 108 CC exige que a doação se faça por escritura pública. Quando se tratar de bem de pequeno valor, com a imediata entrega efetiva (tradição) da coisa, o parágrafo único do art. 541 CC dispensa a forma escrita. Para evitar problemas, é bom explicar que para se definir o que é bem de pequeno valor deve-se levar em conta não apenas a natureza do bem, mas o patrimônio do doador, variando de uma pessoa para outra. Também importante alertar para a nulidade da doação universal, recomendando ao doador inserir no contrato uma cláusula de usufruto vitalício a fim de garantir sua subsistência econômica e evitar a nulidade do ato de disposição patrimonial. Também é importante estar atento à legítima (50% do patrimônio), pois o doador que tem herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge/companheiro), não pode dispor de mais da metade de seu patrimônio (art. 549 CC) e esse cálculo deve considerar o patrimônio do disponente no momento da disposição, daí a importância da orientação do notário.

Confira o artigo de Karina Nunes Fritz sobre o tema: Clique para acessar

Fonte: Assessoria de comunicação Colégio Notarial do Brasil – Goiás (CNB/GO)