De acordo com Macneil, “a raiz fundamental, a base do contrato é a sociedade. O contrato nunca ocorreu sem sociedade; nem ocorrerá sem sociedade; e nunca seu funcionamento poderá ser compreendido isolado de sua sociedade particular.”[1]
Assim, nas palavras de Pablo Gagliano e Rodolfo Pamplona, “o contrato é considerado não só como um instrumento de circulação de riquezas, mas, também, de desenvolvimento social. Sem o contrato, a economia e a sociedade se estagnariam por completo, fazendo com que retornássemos a estágios menos evoluídos da civilização humana.”[2]
Produto do liberalismo econômico de Adam Smith, o contrato passou a ser o instrumento jurídico principal da vida econômica e social. Não é por outra razão, nas sábias palavras de Leonardo Brandelli, que o contrato recebeu fortes influências da evolução econômico-estatal, tendo de se amoldar a tal evolução, oferecendo respostas jurídicas para os problemas econômicos sociais aventados. Nesse sentido, leciona Leonardo, “o contrato moderno nasceu liberal, como um verdadeiro instrumento da consecução da economia do laissez faire, recepcionando os ideais de liberdade bravejados pela Revolução Francesa. Passou num segundo momento a sugar os ideais do Estado Social, promovendo limitações à autonomia privada em nome do interesse coletivo, evitando os abusos cometidos em nome da supremacia da economia de mercado. Por fim, chega-se à teoria contratual pós moderna, de conotações ainda incipientes, às quais busca-se o contrato amoldar-se”.[3]
Com efeito, o contrato, na condição de formalização de uma operação econômica, de um fato, não ficou imune às profundas transformações ocorridas na sociedade nos últimos três séculos. Após caminhar de uma concepção liberal para uma acepção social, o contrato entra em uma nova crise, identificada como a crise da pós-modernidade.
Cláudia de Lima Marques destaca que com “a sociedade de consumo massificada e seu individualismo crescente nasce também uma crise sociológica, denominada por muitos de pós-moderna.” Segundo a autora, “é uma época de vazio, de individualismo nas soluções e de insegurança jurídica, onde as antinomias são inevitáveis e a desregulamentação do sistema convive com um pluralismo de fontes legislativas e uma forte internacionalidade das relações.”[4]
Se, de um lado, a pós-modernidade defende o sepultamento do Estado Social resgatando a não-intervenção estatal, sob o argumento de que acarreta uma insegurança legal, de outro, fomenta uma cerrada regulamentação a fim de evitar os abusos decorrentes das liberdades econômicas, passando a impor um controle no mercado em relação aos contratos socialmente mais importantes.
Há, portanto, atualmente, uma fase de intensa insegurança conceitual e fática. Se, por um lado, pretende-se deixar livre o mercado, pregando-se o afastamento do Estado, de outro, pretende-se a valorização dos direitos humanos e a tutela dos débeis.
Neste cenário, é que desenvolveremos os tópicos a seguir, demonstrando a importância da intervenção de um notário nos negócios privados na qualidade de garantidor da justiça contratual.
- Terceiro interveniente como garantidor da Justiça Contratual
Os contratos, como fenômeno econômico-social[5], acompanharam a evolução da sociedade desencadeada ao longo do período histórico moderno. Nesta linha, verifica-se a existência de três concepções contratuais: a primeira, chamada de clássica ou liberal, a segunda, moderna ou social, e a terceira, designada por pós-moderna ou neoliberal.
Na acepção clássica do contrato, edificada no direito francês e fundada no Estado liberal, a autonomia da vontade era absoluta. O contrato, assim, de acordo com Farias e Rosenvald, inseria-se exclusivamente no plano da liberdade formal, desligada por completo das condições materiais das partes e da sociedade que as cercava.[6]
A função da ciência do direito era, portanto, limitada a proteger a vontade criadora e de assegurar a realização dos efeitos queridos pelas partes contratantes. “A tutela jurídica limita-se, nesta época, portanto, a possibilitar a estruturação pelos indivíduos de relações jurídicas próprias através dos contratos, desinteressando-se totalmente pela situação econômica e social dos contraentes e pressupondo a existência de uma igualdade e liberdade no momento de contrair a obrigação.”[7]
“Da autonomia da vontade, que fundamentou a teoria contratual liberal, decorreram alguns pilares básicos do mundo jurídico, a saber: a liberdade contratual, a força obrigatória dos contratos e os vícios de consentimento.”[8] Em outras palavras, a autonomia da vontade baseava-se na premissa de que o sujeito é livre para contratar com quem quiser e se quiser, e livre para estabelecer os limites da contratação. Entretanto, uma vez realizada a contratação, esta faz lei entre as partes, não podendo o conteúdo contratual ser revisto, exceto se houver vício de vontade relativo a capacidade do sujeito para a prática do ato jurídico.
Já a concepção contratual moderna ou social surgiu com o advento do Estado Social. Diante da tendência individualista da concepção clássica, que acabou por gerar sérios desequilíbrios sociais, surgiu o dirigismo contratual do século XX, “reflexo dos movimentos sociais desencadeados na Europa Ocidental, e que recolocariam o homem na sociedade, retirando-o do pedestal a que ascendera, após a derrocada do Antigo Regime, quando pretendeu assumir o lugar de Deus.”[9]
“A partir do século XIX, a Revolução Industrial, e mais tarde o fordismo como modelo de produção, deram início a profundas alterações políticas e jurídicas, engendrando determinados fenômenos, dentre os quais destacam-se a urbanização e a concentração capitalista. Decorreu a primeira do crescimento populacional e da migração da população do campo para as cidades, em busca de melhores condições de vida; a segunda, nasceu do aprimoramento das formas de produção e da concorrência econômica, que propiciou uma melhora nas condições de produção e distribuição.”[10]
Em decorrência disso, surgiu a massificação da sociedade e a despersonalização da contratação moderna. O contrato, assim, sofreu um inegável processo de solidarização social, adaptando-se à sociedade de massa que se formava. A vontade individual perdeu lugar para a vontade do grupo ou do Estado.
Ocorreu a conformação do contrato com sua dimensão social, hábil a lhe conferir uma função ordenadora da tutela de todos os interesses relevantes. Nesta dimensão social, a pessoa que contrata é considerada como tal, ou seja, em relação aos seus aspectos pessoais. Surgem vários complexos normativos que se justificam em razão de um certo “papel social” atribuído aos grupos de pessoas assim diferenciados.[11]
Conforme leciona Leonardo Mattieto, “com a evolução da ordem jurídica, já não tem mais o credor o mesmo poder, o direito subjetivo sofre limites ao seu exercício e não compete aos contratantes, com exclusividade, a autodeterminação da lex inter partes, que sofre a intervenção do legislador e pode submeter-se a revisão pelo juiz”.[12]
“O conceito social de contrato, enfim, opondo-se à concepção liberal, substituiu a ideia de autonomia da vontade absoluta pela ideia de equidade e justiça, passando a haver cada vez mais uma intervenção estatal limitadora da vontade das partes na abrangência do negócio jurídico, cujo intuito é de fazer prevalecer o interesse da coletividade sobre o interesse individual.”[13]
Por fim, chegamos à teoria contratual pós moderna, de conotações ainda incipientes, às quais busca-se o contrato amoldar-se. Se, de um lado, a pós-modernidade defende o sepultamento do Estado Social resgatando a não-intervenção estatal, sob o argumento de que acarreta uma insegurança legal, de outro, fomenta uma cerrada regulamentação a fim de evitar os abusos decorrentes das liberdades econômicas, passando a impor um controle no mercado em relação aos contratos socialmente mais importantes.[14]
Estamos diante da crise da pós-modernidade, que traz à tona o pluralismo como um dos seus produtos: pluralismo de agentes, de sujeitos de direitos, de fontes e de vínculos no mesmo contrato. Estamos diante de uma crise do Estado do bem estar social, pois a pós-modernidade ainda não amadureceu, não solidificou suas características, de maneira que, em alguns momentos, identifica-se com um retorno do liberalismo, ao pregar o afastamento do Estado, pretendendo deixar livre o mercado, e, em outros momentos, aventa resquícios do Estado Social, pretendendo a valorização dos direitos humanos e a tutela dos débeis.[15]
Neste cenário, resta clara a necessidade de intervenção de um terceiro nos negócios privados formalizados através de contratos como um instrumento de organização social justa e equilibrada, como um instrumento de equidade e inclusão social, em contraste ao abuso do poder econômico.
Em outras palavras, se faz mister a intervenção de um terceiro a fim de coadunar o renascimento da autonomia da vontade na pós-modernidade com a proteção dos mais fracos, garantindo uma autonomia real da vontade da parte mais fraca da relação contratual, colocando-a a salvo das pressões mercadológicas e dos métodos agressivos de vendas.
Em última análise, o terceiro interveniente no negócio privado deve garantir a justiça contratual, que é “revelada na composição harmoniosa quanto aos conteúdos jurídico e econômico do contrato, com base na equânime proporção entre forças antagônicas e na interação dos elementos contratuais de dimensões diferentes.”[16] Ou seja, “a justiça contratual se converte em dado relativo não somente ao processo de formação e manifestação da vontade dos declarantes, mas, sobretudo, relativo ao conteúdo e aos efeitos do contrato, que devem resguardar um mínimo de equilíbrio.”[17]
Assim, o terceiro interveniente se faz indispensável nos negócios privados com o objetivo de assegurar, de forma equilibrada, a liberdade do indivíduo, acrescida de uma eficiente tutela do sujeito deficitário.
2. O Notário como terceiro interveniente
Conforme vimos, no cenário atual, de crise da pós-modernidade, resta clara a necessidade de intervenção de um terceiro nos negócios privados formalizados através de contratos como um instrumento de organização social justa e equilibrada, como um instrumento de equidade e inclusão social, em contraste ao abuso do poder econômico.
Mas, o que motiva este terceiro interveniente a ser um notário e não outra pessoa?
Assinala Leonardo Brandelli, com base em Ramón Fraguas que, “na história medieval, surgiram várias classes de notários, criados por certas autoridades, e que agiam a serviço da autoridade ou poder que os criara. Porém, paralelamente a eles, desenvolveram-se os notários das vilas e das cidades, que agiam a serviço de todos sem distinção, de maneira independente e, que por isso mesmo, conquistaram a confiança de todos e impuseram-se frente à outras classes, fazendo com que desaparecessem. Surge assim o notário público, com a característica da imparcialidade.”[18]
Com efeito, uma das mais importantes qualidades que confere ao notário o status de pessoa de confiança das partes é sua imparcialidade. Nas palabras de Elsa Kiejzman, com tradução de Tullio Formicola, “ao notário está vedado exercer seu ministério favorecendo a alguma das partes que solicitam seus serviços, pelo que é seu dever manter independência de critério, não tomando partido nas questões em que deve intervir, desentranhando as reais vontades, aconselhando em pé de igualdade os comparecentes sobre os temas jurídicos em discussão, explicando suas possíveis consequências, compatibilizando os interesses, utilizando a forma jurídica apropriada, sujeitando-se inteiramente às leis vigentes, brindando as partes, em suma, com sua intervenção, com a segurança que as mesmas desejam obter.”[19]
Em outras palavras, a imparcialidade do notário reza que deve ele conduzir sua atividade com igualdade e equidistância no tratamento com as partes envolvidas no ato jurídico: deve ele ser imparcial e tratar a todos com igualdade. Neste aspecto, o notário é totalmente diferente do advogado, que defende os interesses de seu cliente frente ao interesse de um terceiro. Como bem explica Natasha da Motta, “o advogado tem o dever de defesa dos interesses da parte que o contratou, mesmo que resulte no insucesso da outra parte ou de terceiros interessados. Por outro lado, o notário tem o dever de acatar uma vontade comum que se configure numa composição duradoura, e se possível definitiva”.[20]
No dizer de Nadridejos Sarasola, Martinez Radio e Simo Santoja, a imparcialidade do notário “não é somente sua obrigação, por importante que esta seja, senão que é uma condição objetiva, um elemento constitutivo de sua atuação. Pode-se falar de imparcialidade funcional, porque faz parte de sua função. Não deve ser uma imparcialidade formal ou ascética – que ante uma acentuada desigualdade das partes poderia significar, no fundo, uma verdadeira parcialidade. Tem que ser uma imparcialidade substantiva, tendente a corrigir a inferioridade do chamado contratante fraco (fraco em meios econômicos, em experiência, em conhecimento e assessoramento jurídico), porém não para que prevaleçam seus interesses – que seria de novo parcialidade – senão para situá-lo em condições de defendê-lo”.[21]
Neste sentido, leciona Leonardo Brandelli que “a imparcialidade notarial não significa apenas tratar a todos igualmente, mas, sim, tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, buscando equiparar de alguma forma a relação jurídica. Assim, se houver uma parte hipossuficiente na relação, deve o notário dispensar uma maior preocupação com esta, orientando-a e atendendo-a com muito mais afinco, a fim de tentar tornar a relação jurídica mais equânime possível.”[22]
Note-se, desta forma, que a intervenção imparcial do notário, como pessoa de confiança das partes, por elas livremente escolhido, se faz imprescindível para a tutela do hipossuficente diante da crise da pós-modernidade. Com sua intervenção imparcial, o notário assegura o espaço de liberdade do indivíduo, acrescido de uma eficiente tutela do sujeito deficitário, garantindo a justiça contratual tão perseguida no atual cenário pós-moderno.
Em outras palavras, o notário coaduna o renascimento da autonomia da vontade da pós-modernidade com a proteção dos mais fracos, garantindo uma autonomia real da vontade da parte mais frágil da relação contratual. A atuação do notário, assim, garante uma composição harmoniosa quanto aos conteúdos jurídico e econômico do contrato, o que resulta em equilíbrio contratual, e, em última análise, em justiça contratual.