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Artigo para obra coletiva sobre “TERRENO DE MARINHA” Por: José Carlos Oliveira Machado, Rodrigo Grobério Borba e Rodrigo Reis Cyrino

OS ASPECTOS JURÍDICOS DO DIREITO DE OCUPAÇÃO REGISTRADO NO CARTÓRIO DE IMÓVEIS: UMA ANÁLISE SOBRE A POSSIBILIDADE DE SUA CONVERSÃO EM AFORAMENTO FACE AO PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE

José Carlos Oliveira Machado[1]

Rodrigo Grobério Borba[2]

Rodrigo Reis Cyrino[3]

RESUMO

Este artigo visa analisar o direito ao regime de ocupação nos terrenos de marinha, sua regularização, previsão legal, registro imobiliário e seus aspectos práticos, com vistas a concluir sobre a possibilidade ou não de sua conversão ao aforamento face ao princípio da continuidade registral, numa análise do Decreto-Lei 9760/1946 e da Lei nº 9636/1998, que ainda causam muitas dúvidas em sua aplicação. O regime de ocupação é aquele que possibilita a detenção precária de uma posse de terra a um particular por mera tolerância da Secretaria de Patrimônio da União – SPU, mantendo-a sob o seu domínio por questões de segurança nacional. De outro lado, o regime do aforamento traz um desdobramento dos domínios concedendo ao particular o direito ao domínio útil, mantendo com a União o domínio direto. Para além dos conceitos acima, a lei Lei nº 9636/1998 trouxe a possibilidade de converter a ocupação em aforamento, mas não fixou parâmetros para que o registro imobiliário assim o faça, mormente quando há uma ocupação em nome de alguém e o aforamento é requerido em nome de outrem. Nesse sentido, é possível a conversão da ocupação já registrada em aforamento para outrem face ao princípio da continuidade? E sendo dessa forma, essa conversão não prejudicará a segurança jurídica na prática dos atos dos registros imobiliários? Este trabalho defenderá a possibilidade da conversão da ocupação em aforamento, pois ao contrário do que se possa pensar, com a evolução da legislação percebe-se que os cartórios de imóveis passaram a ter uma função muito além do simples registro, mas também de dar publicidade de todo o histórico do imóvel através da matrícula, sendo isto chamado de princípio da concentração dos atos na matrícula.

Palavras-chave: Direito de ocupação no registro imobiliário. Conversão em aforamento. Princípio da continuidade.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. O REGIME DO DIREITO DE OCUPAÇÃO NOS TERRENOS DE MARINHA.2.1. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. 2.2. ASPECTOS PRÁTICOS DA OCUPAÇÃO. 2.3. ASPECTOS DO REGISTRO IMOBILIÁRIO. 2.4. DIFERENÇAS PARA O REGIME DE AFORAMENTO. 3. A POSSIBILIDADE DE CONVERSÃO DA OCUPAÇÃO EM AFORAMENTO. 3.1. ANÁLISE LEGAL. 3.2. ANÁLISE PRÁTICA. 3.3. POSSIBILIDADE DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE. 3.4. ASPECTOS PRÁTICOS NOS CARTÓRIOS DE IMÓVEIS. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 5. REFERÊNCIAS

1. INTRODUÇÃO

Para os terrenos de marinha, regulados por legislação própria – Decreto-Lei 9760/1946, é possível verificar a existência de dois regimes distintos: ocupação e o aforamento.

O regime da ocupação se consubstancia numa mera tolerância por parte da União da detenção de uma posse por um particular naqueles imóveis inscritos pela Superintendência de Patrimônio da União – SPU – que por seu critério podem ser aproveitados por ocupantes particulares.

Porém, o ocupante sequer tem a posse do imóvel, mas a conserva em nome de outrem. Inclusive essa precária possibilidade de detenção da posse pelo particular pode ser retirada a qualquer tempo de acordo com os artigos 131 e 132 do Decreto-lei 9760/1946, que estabelecem:

Art. 131. A inscrição e o pagamento da taxa de ocupação, não importam, em absoluto, no reconhecimento, pela União, de qualquer direito de propriedade do ocupante sobre o terreno ou ao seu aforamento, salvo no caso previsto no item 4 do artigo 105.

Art. 132. A União poderá, em qualquer tempo que necessitar do terreno, imitir-se na posse do mesmo, promovendo sumariamente a sua desocupação, observados os prazos fixados no § 3º, do art. 89.

Isso se dá porque há, a princípio, um interesse da União em manter em seu domínio essas porções de terras, até mesmo para manutenção da segurança nacional.

Dado esse caráter precário, é difícil ver instituições financeiras autorizando quaisquer créditos imobiliários para a aquisição do direito de ocupação, porque não há uma garantia real que assegure o pagamento do recurso obtido. Há ainda a discussão sobre a possibilidade ou não do registro nos cartórios de imóveis desse direito de ocupação, o que se verá ao longo desta pesquisa.

De outro lado, no regime do aforamento há um direito real passível de registro imobiliário, qual seja o domínio útil do particular, que possibilita o seu uso, gozo e o direito de alienar o imóvel a terceiros, sendo que o domínio direto do imóvel permanece ainda com a União, até que faça a remissão do foro, momento em que o particular passa a ter o domínio pleno do imóvel, nos termos dos artigos 122 e 123 do Decreto-lei 9760/1946:

Art. 122. Autorizada, na forma do disposto no art. 103, a remissão do aforamento dos terrenos compreendidos em determinada zona, o S.P.U. notificará os foreiros, na forma do parágrafo único do art. 104, da autorização concedida.

Art. 123.  A remição do aforamento será feita pela importância correspondente a 17% (dezessete por cento) do valor do domínio pleno do terreno, excluídas as benfeitorias. (Redação dada pela Lei nº 13.240, de 2015)

O domínio útil advindo do regime de aforamento é reconhecido pela SPU através de um contrato de aforamento que poderá ser registrado no cartório de imóveis com a abertura de uma matrícula ao particular, podendo o domínio útil ser alienado a terceiros, através de uma escritura pública de compra e venda. Esse domínio útil do regime do aforamento também é passível de usucapião.

Nesse cenário, diante de uma análise ampla e atual do sistema registral imobiliário no Brasil se questiona se o direito de ocupação tem acesso ao fólio real ou o registro imobiliário está adstrito tão somente ao regime do aforamento?

Se por uma interpretação dos princípios mais comezinhos e atuais do registro imobiliário, mormente pelos princípios da publicidade e da concentração dos atos na matrícula, se concluir, ao final desta pesquisa, que o regime da ocupação também pode ter acesso ao registro imobiliário, este poderá ainda ser convertido em futuro regime de aforamento e ser informada na matrícula essa alteração? Que requisitos deverão ser preenchidos? Poderá o aforamento ser reconhecido em favor de um terceiro que não seja o detentor do direito de ocupação sem descumprir o princípio da continuidade registral?

A pesquisa apresenta os seguintes objetivos a) investigar quais os aspectos práticos e registrais do regime de ocupação nos terrenos de marinha; b) apresentar o estado da arte a respeito da possibilidade ou não do registro imobiliário do direito de ocupação; c) analisar questões práticas das transferências do direito de ocupação; d) pesquisar a possibilidade da conversão do regime de ocupação em aforamento para o mesmo titular ou para terceiros; e) verificar de que modo se dará na prática a referida conversão e a legislação aplicável; f) se a conversão da ocupação em aforamento fere o princípio da continuidade registral.

Trata-se de um trabalho a ser desenvolvido no campo teórico e prático. Propõe-se uma pesquisa bibliográfica, que será desenvolvida a partir da análise da construção doutrinária no Brasil a respeito do regime de ocupação dos terrenos de marinha.

A hipótese que se propõe é uma análise da possibilidade ou não de se ter, na prática, a conversão do regime de ocupação no regime de aforamento, quando já se tem a informação na matrícula do cartório de imóveis da existência de uma ocupação em nome de um titular ocupante quando já tenha ocorrido a sua transmissão a outros ocupantes, considerando o princípio da publicidade registral e da concentração dos atos na matricula no regime de aforamento em nome de outrem, face ao princípio da continuidade registral.

2. O REGIME DO DIREITO DE OCUPAÇÃO NOS TERRENOS DE MARINHA

2.1. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL

De acordo com o artigo 20, da Constituição Federal de 1988 os terrenos de marinha e os seus acrescidos são considerados bens da União, não só por questões de preservação da ordem pública, mas também para proteger a segurança nacional, porque tais imóveis estão próximos a rios, mares e lagos, locais que facilitam o acesso ao país.  

Nesse contexto, há a constante e imperiosa necessidade de manutenção da segurança pública nacional e internacional das fronteiras do Brasil e sob esse argumento há um regramento específico no direito pátrio para os “terrenos de marinha”, que está regulamentado através do Decreto-Lei 9760/1946, e que traz restrições de domínio desses imóveis aos particulares. Para tanto, inclusive, foi criado à época um órgão específico de controle e de demarcação das terras da União, qual seja a Secretaria de Patrimônio da União – SPU.

No entanto, nem todos esses bens da União serão estritamente necessários à preservação da segurança nacional, podendo ser sim utilizados por particulares, pois em muitos casos se trata de áreas valorizadas, próximas a zonas costeiras e lacustres e que, na prática, fatalmente são ocupadas ordenada ou desordenadamente.

Considerando essa realidade de necessidade de ocupação desses imóveis pelos particulares é que o regramento dos terrenos de marinha previu no ordenamento jurídico brasileiro dois regimes de utilização desses bens ditos da União: a) ocupação; b) aforamento.

O primeiro regime, o da ocupação, traz uma permissão precária ao particular, concedido pela SPU como sendo uma mera detenção da posse de um imóvel de marinha, que pode ser cancelado a qualquer tempo pela União, podendo o ente estatal imitir-se na posse de imediato promovendo a desocupação do particular, nos termos dos artigos 131 e 132 do Decreto-Lei 9760/1946.

A norma estabelece ainda que a inscrição e o pagamento da taxa de ocupação não enseja em qualquer hipótese no reconhecimento pela União, de qualquer direito de propriedade do ocupante sobre o terreno ou mesmo ao seu aforamento. É permitido que esse direito seja cedido a outro ocupante, o que pode ser feito através de uma escritura pública de cessão de direitos de ocupação.

Conforme estabelecido pela Lei 11481/2007, a inscrição da ocupação, de responsabilidade da Secretaria do Patrimônio da União, é um ato administrativo precário, resolúvel a qualquer tempo e que pressupõe o efetivo aproveitamento do terreno pelo ocupante.

Além disso, registra-se que em se tratando o imóvel de terreno de marinha utilizado pelo regime da ocupação, o bem é considerado público, sendo vedado o reconhecimento do usucapião.

Já o regime do aforamento se inicia para muitas a partir de uma ocupação, mas além disso, concede ao particular, em termos documentais, um direito real ao domínio útil de usar, gozar e dispor do imóvel, reservando à União o domínio direto. Normalmente tal direito se instrumentaliza através de um título de aforamento ou até mesmo por um contrato. Em contrapartida, o foreiro (particular beneficiado pelo domínio útil) deverá pagar anualmente à União uma renda patrimonial imobiliária denominada foro anual, que tem natureza civil (originada em um contrato), não sendo uma receita tributária (imposição originada de uma lei). 

Esse último regime permite o requerimento pelo particular do processo de remissão ou resgate de foro, onde será pago a importância de 17% (dezessete por cento) do valor do domínio pleno do terreno, excluídas as benfeitorias, nos termos do artigo 123 do Decreto-Lei 9760/1946, o que permitirá ao particular ter o domínio pleno do imóvel, o que deverá ser averbado na matrícula do imóvel, não sendo este resgate fato gerador do imposto de transmissão sobre bens imóveis, já que o domínio útil já era do particular.

Em alguns casos, é possível também se converter o regime da ocupação em aforamento, mas isso dependerá da análise da SPU.

Portanto, a previsão desses dois regimes para os terrenos de marinha traduzem, dessa forma, a necessidade de tratar pontualmente cada imóvel da União, de acordo com uma análise concreta de cada demarcação e localização das áreas da União, o que andou bem o legislador, pois há casos em que é essencial também dar cumprimento à função social da propriedade, principalmente porque o direito à moradia é considerado constitucionalmente como um direito fundamental, sendo essencial a uma existência digna do ser humano e que ao longo da história foram sendo conquistados pelos povos como uma verdadeira “dimensão de direitos”, somando-se a outros como um todo fundamental.

2.2. ASPECTOS PRÁTICOS DA OCUPAÇÃO

De mais a mais, para muitos, equivocadamente, o regime da ocupação é simplesmente uma “posse precária” exercida por particular em um bem da União, mas essa concepção é por demais equivocada, porque tecnicamente a ocupação pode ser considerada não como uma posse dada ao particular, mas como sendo tão somente uma “mera tolerância da detenção de uma posse”.

Nesses termos, pode-se citar como consequência prática dessa detenção de posse pela ocupação: a) o impedimento por completo do transcurso do tempo para a alegar uma prescrição aquisitiva através do usucapião; b) ademais, é muito pouco provável também que os bancos aceitem a ocupação como uma garantia para a liberação de um crédito imobiliário, pois não há imóvel em nome do particular, mas somente uma ocupação inscrita na SPU, onde as benfeitorias construídas no local não dão segurança para assegurar a liberação de um financiamento; c) a qualquer tempo a União pode retomar o imóvel do ocupante sem qualquer justificativa, bastando indenizar as benfeitorias realizadas no local; d) a depender do caso, a aprovação de projetos junto ao Município, pode ser mais dificultada; e) há discussões sobre a possibilidade do registro imobiliário do direito de ocupação e as suas cessões a terceiros ocupantes, o que se verá no decorrer deste trabalho. 

Outra questão prática sobre o direito de ocupação é se é possível a cessão desse direito pelo ocupante cadastrado na SPU a terceiros e qual seria o ato notarial e registral a ser realizado? O Decreto-Lei nº 9760/1946 permite em seu artigo 132-A a cessão nos seguintes termos: “Efetuada a transferência do direito de ocupação, o antigo ocupante, exibindo os documentos comprobatórios, deverá comunicar a transferência à Superintendência do Patrimônio da União, no prazo de até sessenta dias, sob pena de permanecer responsável pelos débitos que vierem a incidir sobre o imóvel até a data da comunicação. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017).

Para formalizar essa transferência do direito de ocupação a terceiros é necessária a lavratura por um Cartório de Notas de uma escritura pública de cessão de direitos de ocupação, onde será mencionado o número do RIP (registro imobiliário do imóvel) do imóvel, bem como deverá ser consignada a apresentação da CAT – certidão de autorização de transferência –, dados sem os quais o ato notarial fica incompleto.

Portanto, em se tratando de cessão de direito de ocupação de imóvel a instrumentalização deverá ser por escritura pública, vez que cuidando-se de imóvel o registro notarial é essencial à substância do ato, nos termos do artigo 108 do Código Civil. Registre-se que este dispositivo confere validade aos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País.

Por não se tratar esse direito de uma propriedade, não é necessária a aplicação insculpida no artigo 1.245, caput e pelos seus incisos I e II, do Código Civil de 2002: “Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. § 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel. § 2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel.”

Além disso, deve ser consignado no ato notarial a necessidade de se comunicar à SPU a transferência desse direito ao novo ocupante, pois, caso contrário, permanecerá como responsável pela quitação da taxa de ocupação aquele que constar originariamente nos registros do órgão da União, ou seja, o alienante e não o adquirente do direito.  

Normalmente, nos atos notariais dessa natureza é consignada uma informação acerca das responsabilidades pela negociação, em observância ao artigo 492, do Código Civil, que numa interpretação analógica, regulamenta ser do cessionário as despesas referentes a cessão imobiliária, nos seguintes termos: “Até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor, e os do preço por conta do comprador.”

Ao contrário, se não for consignada no texto do ato notarial uma informação quanto ao pagamento das despesas da cessão, poderá ser interpretado pelo operador do direito que essas despesas correrão por conta do cedente, nos termos do artigo 3º, do Decreto-Lei nº 2.398/1987:

Art. 3º.  A transferência onerosa, entre vivos, do domínio útil e da inscrição de ocupação de terreno da União ou de cessão de direito a eles relativos dependerá do prévio recolhimento do laudêmio pelo vendedor, em quantia correspondente a 5% (cinco por cento) do valor atualizado do domínio pleno do terreno, excluídas as benfeitorias. (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017)

(…)

§ 2º. Os Cartórios de Notas e Registro de Imóveis, sob pena de responsabilidade dos seus respectivos titulares, não lavrarão nem registrarão escrituras relativas a bens imóveis de propriedade da União, ou que contenham, ainda que parcialmente, área de seu domínio: (Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998)

I – sem certidão da Secretaria do Patrimônio da União – SPU que declare:    (Incluído pela Lei nº 9.636, de 1998)

a) ter o interessado recolhido o laudêmio devido, nas transferências onerosas entre vivos; (Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998)

b) estar o transmitente em dia com as demais obrigações junto ao Patrimônio da União; e (Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998)

b) estar o transmitente em dia, perante o Patrimônio da União, com as obrigações relativas ao imóvel objeto da transferência; e (Redação dada pela Lei nº 13.139, de 2015)

c) estar autorizada a transferência do imóvel, em virtude de não se encontrar em área de interesse do serviço público; (Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998)

II – sem a observância das normas estabelecidas em regulamento.       (Incluído pela Lei nº 9.636, de 1998)

§ 3º. A SPU procederá ao cálculo do valor do laudêmio, mediante solicitação do interessado.       (Incluído pela Lei nº 9.636, de 1998)

§ 4º. Concluída a transmissão, o adquirente deverá requerer ao órgão local da SPU, no prazo máximo de sessenta dias, que providencie a transferência dos registros cadastrais para o seu nome, observando-se, no caso de imóvel aforado, o disposto no art. 116 do Decreto-Lei no 9.760, de 1946. (Incluído pela Lei nº 9.636, de 1998)

Portanto, em termos práticos, é de bom alvitre que se registre no texto da escritura pública de cessão do direito de ocupação a seguinte informação:  “as partes declaram que todas as despesas referentes à escritura correrão por conta exclusiva do outorgado cessionário, a partir da data desta escritura pública, bem como todos os impostos, taxas, foros e laudêmios que recaiam ou venham a recair sobre o mesmo, podendo ele outorgado cessionário exercer o seu direito como detentor da posse do imóvel ora compromissado e fazer no mesmo os melhoramentos e benfeitorias que julgar necessários, pois a ele transfere neste ato todos os direitos porventura existentes em nome do ocupante cedente junto à SPU, ficando ciente também o outorgado cessionário que deverá comunicar essa escritura pública à SPU, nos termos do artigo 132-A do Decreto-Lei 9760/1946, que estabelece: Art. 132-A.  Efetuada a transferência do direito de ocupação, o antigo ocupante, exibindo os documentos comprobatórios, deverá comunicar a transferência à Superintendência do Patrimônio da União, no prazo de até sessenta dias, sob pena de permanecer responsável pelos débitos que vierem a incidir sobre o imóvel até a data da comunicação. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)”.

Essa orientação de ordem prática é importantíssima para evitar interpretações indesejadas, pois na relação contratual de cessão onerosa de imóvel situado em terreno de marinha e a sua validade perante a União, não há qualquer impedimento que os particulares negociem entre si a responsabilidade pelas despesas e ajustem em contrato a transferência dos ônus e despesas para o cessionário, com vistas a cumprir a obrigação legal do Decreto-Lei nº 2.398/1987.

Não obstante, perante a SPU o sujeito passivo da obrigação relacionada ao laudêmio sempre será o alienante, considerando que a sua natureza jurídica compreende a um valor (cinco por cento do valor do domínio pleno, excluídas as benfeitorias) pago pelo titular do domínio útil ou dos direitos de ocupação ao titular do domínio direto ou do domínio pleno em virtude deste deixar de exercer o direito de preferência na alienação do imóvel.

2.3. ASPECTOS DO REGISTRO IMOBILIÁRIO

Feitas as considerações do capítulo anterior, sobre a primeira etapa da cessão do direito de ocupação ao novo ocupante, o que se dará através da lavratura em um Cartório de Notas de uma escritura pública de cessão de direitos de ocupação, aqui será feita uma análise sobre a possibilidade do registro imobiliário da informação que menciona a existência desse direito de ocupação, pois como visto alhures, trata-se de direito diferente de uma posse, pois é uma mera detenção de posse sobre um imóvel.

Antes de qualquer desenvolvimento sobre o tema, cumpre informar sobre a importância da publicidade no registro imobiliário de todas e quaisquer informações relativas a um imóvel, principalmente para salvaguardar direitos e gerar segurança jurídica aos negócios imobiliários.

Nesse sentido, o direito registral evoluiu muito a partir da existência do princípio da concentração dos atos na matrícula, que sugere que todas e quaisquer informações relevantes sobre um bem imóvel podem ser registrados ou averbados na matrícula do cartório de imóveis.

Tal princípio inovador da concentração pode ser visto em diversos dispositivos legais, dentre eles os artigos 167 e 246 da Lei 6.015/73:

Art. 167, II, 5 – no Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:

(…) II – a averbação:

(…) da alteração do nome por casamento ou por desquite, ou, ainda, de outras circunstâncias que, de qualquer modo, tenham influência no registro ou nas pessoas nele interessadas.

Art. 246 – Além dos casos expressamente indicados no item II do art. 167, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro.

Além disso, a Lei 13.097/2015 prevê expressamente a existência desse princípio nos seguintes termos:

Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:

I – registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;

II – averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil;

III – averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e

IV – averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.

Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei no 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam

de registro de título de imóvel.

Portanto, fazer constar na matrícula de um imóvel a existência de um direito à ocupação sobre um terreno de marinha se mostra salutar e como um
meio eficaz de evitar dúvidas e inseguranças jurídicas sobre a natureza e origem de dado imóvel, pois não haverá a possibilidade de alegação de desconhecimento dessa realidade, oponível com o efeito erga omnes.

Porém, é de grande importância saber se o ato a ser praticado é de mera averbação do direito de ocupação ou de registro em nome da União, com a informação sobre a direito de ocupação exercido por um particular. Num primeiro momento, pode-se pensar que, não havendo previsão legal na lei de registros públicos para o registro da ocupação, em sendo o rol do artigo 167 numerus clausus, o ato a ser praticado será então de averbação.

No entanto, o posicionamento que defende que esse direito é passível de um ato de registro é muito defensável na medida em que a matrícula a ser aberta será em nome do titular do domínio, ou seja, a União Federal, porém com a informação da concessão a um particular do direito à uma ocupação, precária e resolúvel.

Nesse sentido, o próprio particular, detentor do direito de ocupação, pode requerer a abertura de tal matrícula, pois é um dos interessados em tal ato registral, e, portanto, detém ele legitimidade para solicitá-lo, como prevê o artigo 13, da Lei 6.015/73 – Lei dos Registros Públicos:

Art. 13. Salvo as anotações e as averbações obrigatórias, os atos do registro serão praticados:

I – por ordem judicial;

II – a requerimento verbal ou escrito dos interessados;

III – a requerimento do Ministério Público, quando a lei autorizar.

É indubitável que a existência da matrícula de um imóvel de propriedade da União é de interesse não somente do ente público, mas de toda a sociedade e também do particular interessado e atende não só ao princípio da publicidade registral, cerne da atividade consignado na Lei 6.015/1973 e na Lei 8.935/1994, mas também ao princípio já mencionado alhures da concentração dos atos na matrícula.

Portanto, é clara a possibilidade de abertura de matrícula em terreno de marinha objeto do direito de ocupação. O ocupante deve apresentar requerimento, acompanhado de documentação comprobatória da ocupação e de seu cadastro na Secretaria do Patrimônio da União e o cartório de imóveis procederá à abertura de matrícula constando como proprietária a União Federal e como ocupante o particular.

Com a lei nº 9636/1998, o registro imobiliário do direito de ocupação passou a ser entendido como possível, nos seguintes termos:

Art. 1º. É o Poder Executivo autorizado, por intermédio da Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União da Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia, a executar ações de identificação, de demarcação, de cadastramento, de registro e de fiscalização dos bens imóveis da União e a regularizar as ocupações desses imóveis, inclusive de assentamentos informais de baixa renda, e poderá, para tanto, firmar convênios com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios em cujos territórios se localizem e, observados os procedimentos licitatórios previstos em lei, celebrar contratos com a iniciativa privada. (Redação dada pela Lei nº 14.011, de 2020)

Art. 2º. Concluído, na forma da legislação vigente, o processo de identificação e demarcação das terras de domínio da União, a SPU lavrará, em livro próprio, com força de escritura pública, o termo competente, incorporando a área ao patrimônio da União.

Parágrafo único. O termo a que se refere este artigo, mediante certidão de inteiro teor, acompanhado de plantas e outros documentos técnicos que permitam a correta caracterização do imóvel, será registrado no Cartório de Registro de Imóveis competente.

Art. 3º. A regularização dos imóveis de que trata esta Lei, junto aos órgãos municipais e aos Cartórios de Registro de Imóveis, será promovida pela SPU e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional – PGFN, com o concurso, sempre que necessário, da Caixa Econômica Federal – CEF.

Parágrafo único. Os órgãos públicos federais, estaduais e municipais e os Cartórios de Registro de Imóveis darão preferência ao atendimento dos serviços de regularização de que trata este artigo.

Art. 3o – A.  Caberá ao Poder Executivo organizar e manter sistema unificado de informações sobre os bens de que trata esta Lei, que conterá, além de outras informações relativas a cada imóvel: (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)

(…)

II – a respectiva matrícula no registro de imóveis competente;

IV – a indicação da pessoa física ou jurídica à qual, por qualquer instrumento, o imóvel tenha sido destinado;

(grifo nosso)

Para alguns Cartórios de Imóveis já havia o entendimento de que era possível o registro imobiliário das ocupações, com a abertura de uma matrícula tendo como proprietária do terreno de marinha a “União Federal” e com a informação nesse mesmo registro de que um particular é o detentor do direito de ocupação. O fundamento utilizado anteriormente era que, apesar da lei de registros públicos – Lei federal nº 6015/73 – prever em seu artigo 168 que a transcrição, inscrição e averbação dos títulos se refere a direitos reais, ocorreu uma evolução no direito registral para ampliar diversas outras possibilidades de registros, o que ganhou força ainda mais com a lei nº 9636/1998 e com o princípio da concentração dos atos na matrícula.

A dúvida que fundamentava a negativa de registro sempre foi o argumento de que a ocupação não se consubstancia num direito real, nem uma posse, mas uma mera detenção ou ocupação. 

No entanto, o direito registral imobiliário, em outras hipóteses, permite, por exemplo, o registro da imissão provisória na posse, da legitimação da posse e da conversão da legitimação da posse em propriedade, bem como é possível ainda o registro de contratos de locação, penhor de máquinas e aparelhos utilizados na indústria, citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, dentre outros.

Corroborando os argumentos acima citados pela defesa da possibilidade de menção nas matrículas dos imóveis do direito de ocupação do particular é que andou muito bem a inclusão no Código de Normas do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo da possibilidade de registro das ocupações nas matrículas dos imóveis em seu artigo 454:

Art. 454. O direito de ocupação em terreno de marinha pode ser averbado, a pedido de interessado, desde que o imóvel esteja regularmente registrado em nome da União e não haja oposição desta à realização da averbação.

§ 1º A averbação de que trata o caput deste artigo funda-se no princípio imobiliário da concentração, para ampla publicidade do fato e a preservação da boa-fé, e não substitui o registro perante a Secretaria do Patrimônio da União – SPU, não exclui ou modifica o regime jurídico próprio a que estão submetidos os imóveis de propriedade da União e também não altera a natureza, decorrente de lei, da relação jurídica entre a União e o ocupante.

§ 2º As posteriores transmissões do direito de ocupação já inseridas na matrícula imobiliária também poderão ser averbadas, conforme as prescrições deste artigo.

Veja que o Código de Normas capixaba trouxe a ideia da prática de um ato de averbação para informação do direito à ocupação e não de registro. Nesse sentido, pode-se mapear aqui a existência de três hipóteses: a) o ato registral de menção ao direito de ocupação é mera averbação e não de registro; b) o ato registral é um ato de registro, mas em nome da União Federal com a informação da ocupação ao particular; c) todas as ocupações no registro imobiliário deverão ser averbadas, como previu o Código de Normas capixaba.

Considerando as hipóteses acima, pode-se concluir que a previsão normativa do Código de Normas do Estado do Espírito Santo foi louvável, pois a titularidade do direito de ocupação pode ser alterada a qualquer momento e tal fato poderá ser informado através de um ato registral de averbação e, ao contrário, o registro do domínio em nome da União Federal este permanecerá intacto enquanto estiver presente somente o regime da ocupação.

2.4. DIFERENÇAS PARA O REGIME DE AFORAMENTO

Ao contrário do regime da ocupação, que é precário e se traduz em mera detenção sobre os terrenos de marinha, o regime do aforamento permite ao particular a obtenção de um domínio útil, que é considerado um direito real passível de registro imobiliário.

Portanto, um contrato de aforamento expedido pela SPU, em benefício de um particular, autoriza os cartórios de imóveis abrirem matrícula própria em benefício do particular e não em nome da União Federal, não podendo ter cancelamento ou mesmo retomada do imóvel de forma unilateral, como se dá no regime da ocupação.

Além disso, esse domínio útil poderá ser objeto do pedido de remissão de foro, o que dará ao particular o domínio pleno do imóvel, extinguindo o aforamento e o regime de terreno de marinha para aquele imóvel, o que não é possível na ocupação. Tal possibilidade é prevista no próprio Decreto-Lei 9760/1946.

O domínio útil pode, então, ser objeto de alienação a terceiros com a formalização regular através de uma escritura de compra e venda, dação em pagamento, permuta ou outras formas de negociação imobiliária.

3. A POSSIBILIDADE DE CONVERSÃO DA OCUPAÇÃO EM AFORAMENTO

3.1. ANÁLISE LEGAL

A possibilidade de converter o direito de ocupação em aforamento está previsto nos artigos 7º e 13, da Lei 9636/1998, que estabelecem:

Art. 7o  A inscrição de ocupação, a cargo da Secretaria do Patrimônio da União, é ato administrativo precário, resolúvel a qualquer tempo, que pressupõe o efetivo aproveitamento do terreno pelo ocupante, nos termos do regulamento, outorgada pela administração depois de analisada a conveniência e oportunidade, e gera obrigação de pagamento anual da taxa de ocupação. (Redação dada pela Lei nº 11.481, de 2007)

(…)

§ 7º  Para fins de regularização nos registros cadastrais da Secretaria do Patrimônio da União do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão das ocupações ocorridas até 10 de junho de 2014, as transferências de posse na cadeia sucessória do imóvel serão anotadas no cadastro dos bens dominiais da União para o fim de cobrança de receitas patrimoniais dos responsáveis, independentemente do prévio recolhimento do laudêmio. (Redação dada pela Lei nº 13.813, de 2019)

Art. 13.  Na concessão do aforamento, será dada preferência a quem, comprovadamente, em 10 de junho de 2014, já ocupava o imóvel há mais de 1 (um) ano e esteja, até a data da formalização do contrato de alienação do domínio útil, regularmente inscrito como ocupante e em dia com suas obrigações perante a Secretaria do Patrimônio da União do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. (Redação dada pela Lei nº 13.139, de 2015)

Sobre o tema, ainda que se possa pensar sobre a existência do artigo 2038, do Código Civil, que proibiu a constituição de novas enfiteuses ou aforamentos, aquele dispositivo não se aplica ao regime instituído sobre os terrenos de marinha, por expressa previsão do artigo 49, do Ato das disposições constitucionais transitórias, que regulamentou a questão nos seguintes termos:

Art. 49. A lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos, sendo facultada aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que dispuserem os respectivos contratos.

§ 1º. Quando não existir cláusula contratual, serão adotados os critérios e bases hoje vigentes na legislação especial dos imóveis da União.

§ 2º. Os direitos dos atuais ocupantes inscritos ficam assegurados pela aplicação de outra modalidade de contrato.

§ 3º. A enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima.

Além dessa argumentação, para os terrenos de marinha, se aplica legislação própria e específica, o que possibilita sim a conversão das ocupações ao regime do aforamento mediante o deferimento da SPU.

O artigo 13 da citada norma ainda fala em um direito de preferência para o aforamento em favor daqueles que ocupavam o imóvel há mais de um ano até a data de 10 de junho de 2014.

3.2. ANÁLISE PRÁTICA

Em termos práticos, a SPU poderá regularizar os seus registros cadastrais e conceder aos particulares o direito ao aforamento, o que se dará através da assinatura de um contrato, por exemplo, que terá força para o registro imobiliário.

No entanto, para evitar divergências cadastrais é imperioso que seja expedida também uma certidão de toda a cadeia sucessória desde o início da inscrição para os particulares, para que se evite inseguranças jurídicas e possibilite a correta indicação dos beneficiários junto à SPU dos terrenos de marinha, seja no regime da ocupação ou do aforamento.

3.3. A CONVERSÃO DA OCUPAÇÃO EM AFORAMENTO E A EXPEDIÇÃO DE CERTIDÃO DA CADEIA SUCESSÓRIA PELA SPU PARA VIABILIZAR A OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE REGISTRAL

O princípio da continuidade registral traz como essência a necessidade de conter no fólio real a realidade da cadeia sucessória imobiliária, para evitar a ocorrência de inconsistências ou inseguranças jurídicas, o que prejudicará a narrativa do histórico do imóvel e as suas aquisições ao longo do tempo.

Sobre a continuidade o artigo 237 da lei de registros públicos prevê: “ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro.”

O que se pode ter dúvida é: haveria a necessidade de averbar a existências de todas as ocupações já concedidas pela SPU a particulares diferentes, mesmo sendo estas precárias e sem acesso ao fólio real? E mais: se a SPU reconhecer documentalmente que atualmente o direito de ocupação de outrem foi convertido em aforamento para pessoa distinta isso não é o bastante já que a titular do domínio pleno – a União Federal – resolveu reconhecer o domínio útil a um outro particular? Nesse caso, há a necessidade de respeitar o princípio da continuidade registral das ocupações mesmo sendo estas um direito precário?

Essa dúvida persiste ainda no direito notarial e registral, mas é plenamente defensável a possibilidade do contrato de aforamento, reconhecido pela SPU para pessoa distinta da que ocupava o imóvel em outro momento, ser registrado como um título autônomo e com a abertura de nova matrícula com o cancelamento do registro anterior, que foi realizado em nome da União Federal e com a informação de uma ocupação existente.

3.4. ASPECTOS PRÁTICOS NOS CARTÓRIOS DE IMÓVEIS

A Lei Federal nº 13.813, de 09/04/2019, que “dispõe sobre a transferência de imóveis do Fundo do Regime Geral de Previdência Social para a União, sobre a administração, a alienação e a gestão dos imóveis da extinta Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) e sobre a gestão dos imóveis da União; extingue o Fundo Contingente da Extinta RFFSA (FC); altera o Decreto-Lei nº 1.876, de 15 de julho de 1981, e as Leis nºs 9.497, de 11 de setembro de 1997, 9.636, de 15 de maio de 1998, 11.481, de 31 de maio de 2007, 11.483, de 31 de maio de 2007, 13.240, de 30 de dezembro de 2015, e 10.233, de 5 de junho de 2001; e revoga dispositivos das Leis nºs 8.742, de 7 de dezembro de 1993, 9.649, de 27 de maio de 1998, 11.481, de 31 de maio de 2007, e 11.483, de 31 de maio de 2007”, introduziu alterações significativas na legislação que trata sobre a gestão dos imóveis da UNIÃO, sobressaindo-se, dentre elas, a modificação da redação do artigo 7º, § 7º, da Lei 9.636/1998, originalmente acrescido pela Lei nº 11.141/2007, disciplinando a “regularização nos registros cadastrais da Secretaria do Patrimônio da União” , com o seguinte teor:

“Lei 9.636/1998 Art. 7º. § 7º. Para fins de regularização nos registros cadastrais da Secretaria do Patrimônio da União do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão das ocupações ocorridas até junho de 2014, as transferências de posse na cadeia sucessória do imóvel serão anotadas no cadastro dos bens dominiais da União para o fim de cobrança das receitas patrimoniais dos responsáveis, independentemente do prévio recolhimento de laudêmio.”

Com essa mudança legislativa a União passou a atualizar o cadastro imobiliário em nome dos atuais ocupantes, regularizando todas as transferências de direitos de ocupação ocorridas até 10 de junho de 2.014, data expressamente prevista na referida Lei 13.813/2019.

Em virtude dessa atualização cadastral e da falta de obrigatoriedade de registro cartorário de tais transmissões, surgiram inúmeras situações de desencontro entre a base de dados cadastral da SPU e a base de dados registrais dos cartórios de registro de imóveis, ou seja, o cadastro da SPU foi atualizado e o registro imobiliário não.

O ideal é que seja publicada uma normativa pelo órgão fiscalizador dos cartórios extrajudiciais – a Corregedoria Geral de Justiça – para a adoção de um mecanismo procedimental que permita trazer para o fólio real (registro de imóveis) a regularização cadastral da SPU estabelecida pela Lei Federal, ou seja, viabilizar a equalização e regularização registral das atualizações cadastrais já empreendidas pela SPU, cumprindo as determinações do citado artigo 7º, § 7º, da Lei 9.636/1998, com a redação dada pela Lei 13.813/2019.

A questão pode ser solucionada com a redação de dois artigos em normativo administrativo nos seguintes termos:

Mesmo havendo ocupações anteriores já registradas o registrador poderá efetivar registro imobiliário mediante a apresentação de contrato enfitêutico ou certidão de cadeia sucessória de ocupantes, expedidos pela Secretaria do Patrimônio da União – SPU, registrando a enfiteuse ou os direitos de ocupação em nome do foreiro ou do último ocupante, com a abertura de nova matrícula e encerramento das eventuais transcrições e matrículas existentes em nome de ocupantes anteriores, se for o caso.

Em não havendo matrícula do terreno de marinha ou acrescido de marinha, o registrador mediante a apresentação de contrato enfitêutico ou certidão de primeiro ocupante e certidão de cadeia sucessória expedidas pela SPU – Secretaria do Patrimônio da União poderá efetivar a abertura de matrícula em nome da UNIÃO FEDERAL, registrando a enfiteuse ou os direitos de ocupação em nome do enfiteuta ou do atual ocupante cadastrado na SPU.

A primeira sugestão de artigo, que pode ser acrescida ao Código de Normas estadual, trata das hipóteses em que existe registro ou transcrição, caso em que o registrador imobiliário registrará o título emitido pela SPU na matrícula existente ou, se for o caso, poderá abrir nova matrícula encerrando a transcrição ou matrícula anterior. Quando houver transcrição em nome de ocupantes anteriores, abre-se nova matrícula com encerramento da transcrição, adequando-se o registro aos ditames da Lei de Registros Públicos vigente. Quando já existe uma matrícula, mas há mudança de regime jurídico de ocupação para aforamento, o oficial deve sanear a matrícula abrindo-se uma nova para o registro do aforamento, encerrando-se a anterior relativa à ocupação.

Já a segunda sugestão de artigo trata das hipóteses em que não há registro ou transcrição anterior, caso em que o registrador imobiliário abrirá nova matrícula em nome da União e registrará o título por ela emitido.

Dessa forma, a publicação de um normativo administrativo, provimento ou acréscimo no Código de Normas estadual, de dispositivos referentes ao artigo 74 do Decreto-Lei nº 9.760/46, com destaque para o contrato enfitêutico, certidão de cadeia sucessória de ocupantes e foreiros e certidão de primeiro ocupante, permitirá ao registrador de imóveis promover o ato de abertura de matrícula e/ou registro dos títulos inerentes aos imóveis da União em favor de particulares, mesmo que estes não sejam os detentores do direito de ocupação.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da pesquisa percebe-se que o sentido da norma para os terrenos de marinha deve ser a proteção da segurança nacional para os bens ditos da União, que estão ligados a regiões próximas a rios, lagos e mares, ou seja, locais que facilitam o acesso às fronteiras do Brasil.

Ocorre que, com o crescimento das cidades e a necessidade de efetivação da função social da propriedade ganha enorme importância o papel da Secretaria de Patrimônio da União – SPU – ao analisar situações que possibilitem a concessão do direito de ocupação, o aforamento ou a conversão da ocupação em aforamento aos particulares.

Hodiernamente, com a importância do registro imobiliário para a publicidade da situação real e atual dos imóveis no Brasil, é importantíssimo que seja permitido a averbação das ocupações dos terrenos de marinha nas matrículas dos imóveis.

Tal fato se dá principalmente após a necessidade de cumprimento do princípio da concentração dos atos na matrícula, em que todas e quaisquer situações ou fatos atinentes ao imóvel devem ser averbadas no registro imobiliário, para dar a máxima transparência e clareza às transações imobiliárias e permitir o fortalecimento de negociações com a presença da máxima boa-fé. O registro imobiliário, nesse passo, garante maior segurança jurídica nos negócios imobiliários, principalmente quando se trata da seara dos terrenos de marinha, ainda pouco conhecida no Brasil.

Importante concluir também que a legislação permite a averbação de ocupações sucessivas por particulares distintos, desde que a SPU emita uma certidão constando toda essa cadeia sucessória.

Se a SPU converter sucessivas ocupações de particulares distintos em aforamento também em nome de outrem, cumpre concluir que é possível sim as averbações e ao fim o registro imobiliário de toda essa cadeia sucessória até o registro do domínio útil através do aforamento, o que em nada ferirá o princípio da continuidade registral no fólio real. Tudo isso se houver o reconhecimento dessas cadeias sucessórias pela titular originária do domínio – a União Federal – através da emissão de uma certidão de cadeia sucessória emitida pela SPU.

Porém, há a possibilidade de se defender também a tese, de que em sendo as ocupações anteriores títulos precários de uma mera detenção de posse, o aforamento concedido a uma terceira pessoa tenha força de abrir uma nova matrícula com o reconhecimento do domínio útil pelo aforamento, cancelando a anterior que mencionou o registro em nome da União Federal com a informação de uma ocupação.

5. REFERÊNCIAS

BRASIL. Código Civil – Lei nº 10.406/2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em 10 de out. de 2021.

______. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 11 de out. de 2021.

______. Decreto-Lei 9760/1946. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del9760.htm. Acesso em 15 de nov. de 2022.

______. Lei 9636/1998. Disponível emhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9636.htm. Acesso em 15 de nov. de 2022.

CYRINO, Rodrigo Reis. Laudêmio municipal nas escrituras. Disponível em: https://www.notariado.org.br/blog/author/rodrigo. Acesso em 15 de nov. de 2022.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 1 v.

GAZOLA, Patrícia Marques. A classificação dos terrenos de marinha para viabilização de sua função social no Estado democrático de direito brasileiro. 2004. 190 f. Dissertação (Mestrado em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais) – Faculdade de Direito de Vitória, Vitória, 2004. Disponível em: repositorio.fdv.br:8080/bitstream/fdv/149/1/PATRICIA%20MARQUES%20GAZOLA.pdf. Acesso em 15 de nov. 2022.


[1] Servidor Público Federal em exercício na Secretaria do Patrimônio da União, Vitória/ES, Especialista em Direito Constitucional – UFES, Especialista em Direito Público – FDV, MBA EM Gestão Pública.

E-mail: jose.machado@soutomachado.com.br

[2] Advogado especialista em Direito Notarial e de Registro, Especialista em Direito Processual Civil, Especialista em Direito Civil, MBA em Gestão de Empresas.

Email: rodrigo@agvadvocacia.adv.br

[3] Tabelião de Notas do Cartório do 2º Ofício de Jardim Camburi, Vitória-ES, Doutorando em direitos e garantias fundamentais. Mestre em direito, Estado e cidadania. Pós-graduado em direito privado e direito processual civil. Membro da Academia Notarial Brasileira. Diretor do Conselho Federal do Colégio Notarial. Professor da Escola Nacional de Notários e Registradores – ENNOR e da pós-graduação de direito tributário e de família da Faculdade de Direito de Vitória – FDV. Coordenador da pós-graduação em direito notarial, registral e imobiliário da Escola Superior da Advocacia – ESA/OAB. Autor de obras jurídicas.

Fonte: Assessoria de Comunicação CNB/CF