Começamos este texto com um caso concreto, a fim de analisar a polêmica do seu tema central. Suponha-se que um marido tenha doado um apartamento, de um milhão de reais, para a sua esposa. Na época, esse marido tinha um outro imóvel, uma casa também de um milhão de reais. Tempos depois, o marido vende a casa e gasta o dinheiro com viagens de luxo pelo mundo afora. Após acabar o dinheiro, gasto por ele, o casal entra em uma grave crise, se divorcia e a ex-esposa permanece com o apartamento doado como um bem particular.
Alguns anos depois, o ex-marido falece, sem deixar qualquer bem aos seus herdeiros. Supondo-se que o falecido tenha deixado dois filhos unilaterais (descendentes apenas dele, e não da esposa), indaga-se: esses filhos podem exigir da ex-madrasta a colação daquele apartamento?
O caso acima chama a atenção para uma questão que não está bem explicitada no texto do Código Civil, qual seja a dúvida se o viúvo ou o ex-cônjuge têm ou não o dever de colacionar. A resposta para essa indagação gira em torno dos arts. 544 e 2.002 do Código Civil. De acordo com o primeiro comando, inserido no capítulo da codificação privada que trata dos contratos em espécie, “a doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança”. Já o segundo preceito enuncia que “os descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonegação”. Ainda, consoante o parágrafo único desse art. 2.002, “para cálculo da legítima, o valor dos bens conferidos será computado na parte indisponível, sem aumentar a disponível”.
Observe-se que os dois dispositivos possuem uma aparente contradição em relação ao cônjuge. O art. 544 do Código Civil prevê que a liberalidade feita ao cônjuge implica antecipação de herança. Todavia, contraditoriamente, o art. 2.002 da Lei Geral Privada não menciona o viúvo como obrigado a colacionar as liberalidades recebidas. Trata-se de um grave lapso do legislador, pois o instituto da colação destina-se exatamente a permitir que os herdeiros necessários – especificamente os descendentes e o cônjuge – igualem os quinhões hereditários (rectius, as legítimas ou reservas, quotas destinadas aos herdeiros necessários). Devem ser levados em conta, para tanto, o monte-mor e as heranças antecipadas em vida por meio de liberalidades.
Como lembram Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, “a tal processo de conferência de valores, para igualação das legítimas, é dado o nome de colação” (Novo curso de direito civil. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2023. p. 404). Conforme o segundo autor deste texto e João Costa-Neto em seu manual de Direito civil: “disciplinado nos arts. 2.002 ao 2.012 do CC, a colação é instituto destinado a viabilizar que os herdeiros necessários igualem os seus quinhões sobre a legítima, computando, para esse efeito, as liberalidades feitas pelo falecido” (Direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 1489).
Definido o instituto, a citada contradição é resolvida pela doutrina majoritária para as hipóteses em que estamos diante de um viúvo, e não de um ex-cônjuge, caso de um divorciado. Como o viúvo é também um herdeiro, é forçoso reconhecer seu dever de colacionar, apesar da omissão do art. 2.002 do Código Civil. Isso, porque o art. 544 da codificação é expresso em categorizar a liberalidade recebida como antecipação do que lhe cabe por herança. Como realçado pelo primeiro autor no volume 6 de sua coleção de Direito civil ao tratar do lapso redacional do retrocitado art. 2.002, “filiamo-nos à corrente doutrinária pela qual o cônjuge também é destinatário do referido dever legal (por todos, DINIZ, Maria Helena. Código …, 2003, p. 1356; LÔBO, Paulo. Direito …, 2012, p. 89; DIAS, Maria Berenice. Manual …, 2011, p. 594; e VELOSO, Zeno. Comentários …, 2003, p. 413)” (TARTUCE, Flávio. Direito civil. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. v. 6: Direito das sucessões. p. 574).
Portanto, no exemplo que mencionamos no início deste texto, se não tivesse ocorrido o divórcio do casal, a viúva teria o dever de colacionar o apartamento de um milhão de reais recebido a título de doação do falecido marido, para igualar os quinhões hereditários devidos aos dois filhos dele. Isso sob pena de imposição a ela da pena de sonegados, com a perda dos direitos sobre o imóvel, como está no art. 1.992 do Código Civil, in verbis: “o herdeiro que sonegar bens da herança, não os descrevendo no inventário quando estejam em seu poder, ou, com o seu conhecimento, no de outrem, ou que os omitir na colação, a que os deva levar, ou que deixar de restituí-los, perderá o direito que sobre eles lhe cabia”.
O problema, porém, reside na hipótese em que, antes do falecimento, tenha ocorrido o fim do relacionamento do casal. A questão, nesse caso, é saber se o ex-cônjuge tem ou não o dever de colacionar as liberalidades recebidas. O exemplo que indicamos no início do artigo realça exatamente essa questão. Pois bem, sobre essa problemática, existem duas correntes bem definidas.
A primeira delas afirma que o ex-cônjuge não tem qualquer dever de colação, pois trata-se de instituto reservado apenas a herdeiros necessários, especificamente aos descendentes e ao cônjuge que ainda mantinha vínculo conjugal com o falecido ao tempo da morte. Em síntese, como o ex-cônjuge não é herdeiro por ter rompido o vínculo conjugal antes da abertura da sucessão mortis causa, nada lhe caberia colacionar. O fato de ele ter se divorciado antes da morte seria uma espécie de blindagem às liberalidades recebidas. Só restaria aos filhos unilaterais, no exemplo indicado no início deste texto, o lamento. Nem mesmo lhes sobraria eventual tentativa de invalidação de doação inoficiosa, uma vez que, à época da liberalidade, o falecido havia respeitado os limites da sua parte disponível, em consonância com o art. 549 do Código Civil, que veda as doações inoficiosas, com a seguinte dicção: “nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento”.
A segunda corrente, por sua vez, é pela obrigatoriedade de o ex-cônjuge colacionar a liberalidade recebida, mesmo não sendo herdeiro. Essa colação, porém, seria feita apenas para o ex-cônjuge devolver o eventual excesso do que foi recebido, supondo-se que ele não tivesse se divorciado e ainda fosse herdeiro. A colação não transformará o ex-cônjuge em herdeiro e, portanto, jamais poderá beneficiá-lo com mais bens. A ideia, para essa vertente, é a de que o dever de colação do ex-cônjuge não é para beneficiá-lo com a condição de herdeiro, mas sim para evitar que os descendentes sejam prejudicados pelo simples fato de, antes da morte, o falecido ter se divorciado. Objetiva-se proteger os descendentes do falecido na hipótese de o patrimônio líquido deixado por ele não ser suficiente para aquinhoá-los com uma porção, no mínimo, igual à liberalidade recebida pelo ex-cônjuge.
No exemplo citado no início deste texto, como o falecido nada deixou de patrimônio, pois tudo gastou, a ex-esposa teria de colacionar o apartamento de um milhão de reais para igualação de legítimas com os dois filhos unilaterais do falecido. E, considerando-se a atual concorrência sucessória entre os descendentes e o viúvo quanto a bens particulares – nos termos do que está no art. 1.829, inc. I, do Código Civil -, cada um deles deveria ficar com um terço do citado apartamento. Logo, a ex-esposa teria de transferir dois terços do apartamento para repartição entre os dois filhos unilaterais, descendentes somente do autor da herança.
Caso, porém, o falecido tivesse partido desta vida em prosperidade financeira, deixando, a título de ilustração, um patrimônio de dez milhões de reais, não haveria qualquer necessidade de a ex-esposa transferir frações ideais do apartamento aos dois filhos unilaterais do falecido. Isso porque os filhos já haverão de receber, a título de herança, cinco milhões de reais, valor muito superior à liberalidade recebida em vida pelo ex-cônjuge. Evidentemente, o ex-cônjuge nada poderá reivindicar a título de herança, pois não é herdeiro. Portanto, a colação será imposta apenas para beneficiar os descendentes do falecido, e não para prejudicá-los.
Entre as duas correntes, adotamos, com unanimidade, a segunda e última, fruto de uma interpretação extensiva e sistemática dos arts. 544 e 2.002 do Código Civil e que efetiva, com justiça, equidade e correição, a aplicação do bom Direito.