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“Diversos atos notariais permitem formalizar decisões de famílias destinadas a organizar participações societárias futuras”

Gustavo Cerqueira, professor titular de Direito Privado na Universidade de Nîmes/França, e doutor em Direito pelas Universidades de Estrasburgo/França, e de São Paulo, conversou com a Academia Notarial Brasileira (ANB) sobre seu livro Sucessão hereditária nas empresas familiares – Interações entre o direito das sucessões e o direito das sociedades”

Com as crescentes sequelas da pandemia de Coronavírus na economia e na vida de cidadãos não apenas no Brasil, mas também pelo mundo, a sucessão se tornou assunto recorrente na sociedade. Sua importância tomou os debates cotidianos junto do trabalho extrajudicial na segurança jurídica de famílias e empresas. Muitas vezes, porém, família e negócio se conectam de forma íntima, trazendo complexidade ao planejamento sucessório que podem ser solucionados também pelos atos extrajudiciais.

Para comentar sobre estes casos, Gustavo Cerqueira, professor titular de Direito Privado na Universidade de Nîmes/França, e doutor em Direito pelas Universidades de Estrasburgo/França, e de São Paulo, conversou com a Academia Notarial Brasileira (ANB) sobre seu livro Sucessão hereditária nas empresas familiares – Interações entre o direito das sucessões e o direito das sociedades”, obra que tem sua origem em um relatório sobre a sucessão de quotas sociais no direito brasileiro apresentado em 2014 à Academia Internacional de Direito Comparado (Paris).

ANB – Quais razões o levaram a escrever sobre o tema?

Gustavo Cerqueira: O livro tem sua origem em um relatório sobre a sucessão de quotas sociais no direito brasileiro que apresentei, a convite dos professores Arnoldo Wald e Gustavo Tepedino, à Academia Internacional de Direito Comparado (Paris), por ocasião de seu XIX Congresso Internacional, realizado em julho de 2014, em Viena, Áustria. Este relatório foi elaborado a partir de um questionário – anexo ao livro (p. 123 et seq.) – formulado pela Relatora geral do Congresso para a temática “direito societário e o direito das sucessões”, Profa. Dra. Susanne Kalss (Institut für Zivil- und Unternehmensrecht, Wirtschaftsuniversität Wien). Em razão de sua riqueza e transversalidade, o questionário permitiu explorar as diversas interações entre o direito das sucessões e o direito das sociedades.

Os resultados da análise do direito brasileiro encontram-se publicados primeiramente em francês sob o título “Droit des sociétés et le droit des successions au Brésil”, na obra S. Kalss (Ed.), Company Law and the Law of Succession – Académie internationale de droit comparé – World Congress 2014 Vienna, Springer, Ius Comparatum – Global Studies in Comparative Law – vol. 5, 2015 (pp. 75-143). Uma versão adaptada foi em seguida preparada em italiano para o volume inaugural da Coleção Diritto Commercial Comparato, inteiramente dedicado ao direito comercial brasileiro e editado sob a direção dos colegas Pier Filippo Giugglioli e Naiara Posenato (“La successione delle quote societarie nel diritto brasiliano”, in Diritto Commerciale e degli Investimenti in Brasile, a cura di P. F. Giuggioli e N. Posenato, Collana Diritto Commerciale Comparato – CEDAM, n° 1, Padova: Wolters Kluwer, 2017, pp. 199-252).

Durante a preparação desse relatório, deparei-me com estatísticas reveladoras do volume importante de sucessões empresariais no seio da família brasileira e, ao mesmo tempo, com a escassez de estudos no Brasil sobre as interações entre o Direito das Sucessões e o Direito das Sociedades. Embora muitas obras e artigos dediquem-se ao planejamento sucessório das empresas familiares, poucas enfrentam as inúmeras situações de encontro entre esses dois ramos do Direito que não foram pensadas pelo legislador. Tal é o caso, por exemplo, das consequências da morte do sócio para alguns tipos de sociedade ou da transmissão das quotas sociais no silêncio do contrato social. Como tratar neste último caso, por exemplo, a oposição dos sócios remanescentes ao ingresso de herdeiros investidos na titularidade de direitos sociais por partilha judicial, definida ao fim de uma sucessão contenciosa? Diante desta dupla constatação, determinei-me em publicar minhas análises no Brasil, onde verifico um aumento progressivo no número de escritórios de Direito Empresarial que integram o planejamento sucessório dentre os serviços advocatícios prestados. Acolhida pela YK Editora, a versão brasileira foi atualizada e o plano de exposição levemente remanejado. Ela foi construída a partir da valiosa tradução do francês para o português realizada pelas advogadas Fernanda Machado Moreira e Alexandra Palhares. Ela se beneficiou, ainda, da preciosa releitura dos colegas Fernanda Machado Moreira e Pedro M. Dittrich, ambos advogados, no Rio de Janeiro e em São Paulo, respectivamente, e da Dra. Iacyr de Aguilar Vieira (professora aposentada da Universidade Federal de Viçosa).

ANB – O planejamento sucessório de famílias é amplamente discutido, principalmente em tempos de pandemia.  Qual é a importância de também trazermos olhares à sucessão hereditária nas empresas familiares?

Gustavo Cerqueira: Os brasileiros são conhecidos pela hesitação em testar e em realizar atos análogos de última vontade, fruto paradoxal de herança cultural de natureza supersticiosa, segundo a qual este tipo de providência precipitaria a própria morte. A despeito disso, não se deu à toa o mencionado aumento da prática do planejamento sucessório na advocacia brasileira. Esta tendência vem sendo acentuada pelo crescimento global das empresas e pela internacionalização exponencial das relações familiares. Neste contexto, mecanismos que perpassam o Direito Empresarial ganham cada vez mais relevo. Neste diapasão, a pandemia veio jogar ainda mais luzes sobre a dura necessidade de pensar sobre a própria morte, o que possui impacto direto sobre as questões atinentes à sucessão hereditária nas empresas familiares. Por conseguinte, a questão da sucessão hereditária tenderá a se apresentar de maneira mais recorrente e intensa para os fundadores, sócios e dirigentes das empresas familiares brasileiras.

ANB – Como a fé pública dos Tabeliães de Notas pode assegurar patrimônios nesta questão?

Gustavo Cerqueira: As intervenções do legislador e do judiciário tendem a reforçar o papel dos tabeliães de notas nesta matéria. Com efeito, o artigo 982 do Código de Processo Civil de 1973, em sua redação original, previa que o inventário e a partilha dos bens deixados pelo falecido poderiam ser feitos por acordo extrajudicial apenas quando capazes todos os herdeiros. Este acordo poderia constar tanto de instrumento público quanto de instrumento particular, mas, qualquer que fosse a sua forma, deveriam os herdeiros requerer sua homologação judicial. Ainda no período de vacatio legis, a Lei nº 5.925, de 1º de outubro de 1973 modificou o referido artigo, que passou a prever simplesmente que, ainda que todas as partes fossem capazes, proceder-se-ia ao inventário judicial – sem haver menção, em qualquer das redações, ao fato de o inventariado ter ou não falecido ab intestato. Já na vigência da Constituição Federal de 1988, a Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007, alterou o dispositivo processual para possibilitar a realização de inventário e partilha por via administrativa. Pode-se dizer, porém, que esta alteração gerou desincentivo à feitura de testamentos na medida em que a então nova redação do caput do artigo 982 do Código de Processo Civil previa que, havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-ia ao inventário judicial; se todos fossem capazes e concordes, poder-se-ia fazer o inventário e a partilha por escritura pública. Por outro lado, note-se que não foi contemplada a possibilidade de o inventário e a partilha serem feitos por instrumento particular puro e simples, de modo que, na prática, pode-se dizer que a autoridade judicial, in casu, foi substituída pela fé-pública do tabelião de notas. Diante da impossibilidade de se proceder ao inventário extrajudicial em havendo testamento deixado pelo inventariado, os tribunais estaduais começaram a emitir gradativamente provimentos autorizando o inventário extrajudicial desde que não se deixasse de levar a cabo o procedimento judicial de verificação do preenchimento dos requisitos extrínsecos dos testamentos, sendo necessária a subsequente autorização do juiz competente para a realização do inventário e da partilha por via administrativa. Esta tendência culminou, em certa medida, na redação do artigo 610 do Código de Processo Civil de 2015, que transpôs para seu parágrafo 1º a parte final do caput do anterior artigo 982 do Código de Processo Civil de 1973, de modo que o novo dispositivo estabelece, no caput, que se procederá ao inventário judicial havendo testamento (ou interessado incapaz), mas ressalva, no parágrafo 1º, que o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública se todos os interessados forem capazes e concordes. A despeito desta alteração sistemática no novo estatuto processual civil, bem como dos provimentos estaduais já existentes, foi necessário o Superior Tribunal de Justiça, dentro de sua atribuição constitucional de dar à lei federal interpretação uniforme no território nacional, se pronunciar expressamente sobre a possibilidade de se proceder ao inventário extrajudicial, se todos fossem capazes e concordes, ainda que houvesse testamento deixado pelo de cujus. Assim, aquela Corte julgou em 15 de outubro de 2019, no recurso especial nº 1.808.767/RJ, que o juiz competente pode autorizar a realização de inventário extrajudicial uma vez prolatada sentença determinando o registro, arquivamento e cumprimento do testamento pertinente.

Nesta esteira, provimentos seguiram sendo editados em âmbito estadual, dando significativa autonomia aos tabeliães de notas, inclusive para constatar a evidente revogação ou mesmo a caducidade de testamentos, sem necessidade de decisão judicial neste sentido, restando indispensável a intervenção do juiz apenas no caso de invalidade.

ANB – De que forma atos notariais e o Direito podem estruturar decisões de famílias que decidem organizar participações societárias?

Gustavo Cerqueira: Embora o ordenamento jurídico pátrio não conheça a figura do trust e proíba os pactos sucessórios, diversos atos notariais permitem formalizar decisões de famílias destinadas a organizar participações societárias futuras. O testamento, a doação e a partilha em vida compõem um verdadeiro triunvirato no planejamento familiar e sucessório. Nestes dois últimos casos, o sócio doador pode inclusive, por mais que tal fuja da rotina, reservar o usufruto de quotas sociais e de ações, cabendo aos herdeiros donatários apenas a nua propriedade das participações recebidas em vida. O fideicomisso também é um instrumento interessante, assemelhando-se ao testamento na medida em que o instituidor o utiliza para programar a sucessão após sua morte; além disso, como o testamento, o fideicomisso é revogável a qualquer tempo. Todavia, o Código Civil de 2002 restringiu grandemente o alcance deste instituto ao somente permiti-lo em benefício das pessoas não concebidas no momento da morte do testador. Esta restrição torna seu uso particularmente delicado em uma perspectiva de continuidade imediata das atividades empresárias da pessoa jurídica da qual o falecido era sócio.

ANB – Como o Direito Sucessório e Societário conversam entre si na obra?

Gustavo Cerqueira:. Essa conversa é provocada em cada capítulo da obra em razão de sua necessidade no seio de uma ordem jurídica na qual o essencial da transmissão hereditária dos direitos e deveres relativos à participação social é determinado pelo direito comum das sucessões e por princípios constitucionais. A obra demonstra que, não obstante essa ascendência do Direito Sucessório, não há tensão visível entre as soluções propostas por este último e os princípios gerais de Direito Societário. Com efeito, os princípios do Direito das Sucessões, dentre os quais o da distribuição igualitária dos bens entre os herdeiros legítimos, não são postos em xeque pelos mecanismos societários que permitem impedir ou condicionar a entrada daqueles na sociedade pela via sucessória. Nesse caso, subsiste para os herdeiros o Direito Patrimonial representado pelas quotas ou ações não transmissíveis. A partilha do valor patrimonial dessas quotas e dessas ações está submetida ao Direito das Sucessões e obedece unicamente aos princípios impostos por este. O mesmo verifica-se quando o sócio faz uso de sua liberdade de testar: ele deve assegurar o respeito dos princípios que regem a organização e o funcionamento da sociedade. Além disso, o Direito Sucessório fornece diferentes instrumentos de antecipação da sucessão que podem beneficiar diretamente a empresa, como o fideicomisso ou a partilha em vida.

ANB – Estes dois direitos podem se contrapor em alguns momentos?

Gustavo Cerqueira: A obra não ignora o fato de o Direito Societário e o Direito das sSucessões perseguirem fins distintos. Por um lado, o Direito Societário visa a preservar a unidade do patrimônio colocado a serviço da empresa, concentrando-o em um único ente juridicamente operacional: a sociedade. Por outro lado, o Direito das Sucessões objetiva a transmissão do patrimônio, aos herdeiros, de uma pessoa física que falece, segundo um princípio de distribuição igualitária. Assim, quando um sócio falece, a transmissão hereditária dos direitos e deveres relativos à sua participação social coloca face a face essas duas lógicas de unificação e de divisão do seu patrimônio. Nesta confrontação, diferentes pretensões surgem: ao mesmo tempo em que o sócio tem interesse em que seu patrimônio empresarial persista após a morte, os herdeiros concentrarão seus esforços para obter, cada um, sua quota parte; neste contexto, o sócio pode aspirar à liberdade para dispor sobre suas quotas, enquanto os sócios remanescentes podem legitimamente esperar exercer certa influência sobre o processo sucessório e, eventualmente, sobre os futuros sócios herdeiros. Assim, a estrutura da obra foi pensada de modo a expor e discutir as interações entre o Direito das Sucessões e o Direito das Sociedades. Com efeito, após conhecer os dados e as tendências relativas às empresas familiares e à sua transmissão hereditária no Brasil, propõe-se examinar o tratamento dado pelo Direito Sucessório à transmissão hereditária das empresas. O regime da sucessão dos direitos e deveres relativos à participação social é em seguida apreendido pelo estudo sucessivo das consequências do falecimento de um sócio para a sociedade e para os herdeiros segundo o Direito Societário, da transmissão de quotas sociais fundada na vontade do testador, dos limites impostos a esta liberdade pela reserva hereditária, e dos mecanismos de antecipação da sucessão e de proteção do sócio antes do falecimento. Tendo em vista a utilização de fundações e de trusts por outros sistemas nacionais como instrumentos de organização da sucessão hereditária das empresas, aborda-se igualmente o eventual papel que estas instituições poderiam exercer na organização da sucessão empresarial no Brasil. Por fim, constata-se que o atual regime jurídico da sucessão hereditária de quotas sociais e de ações tende a permanecer fundamentalmente inalterado nos próximos anos.

ANB Quais os perigos das sucessões hereditárias nas empresas familiares?  E quais os benefícios do entendimento da questão?

Gustavo Cerqueira: A sucessão hereditária nas empresas familiares implica interesses diversos: os da sociedade (quando não os do grupo ao qual pertence), os dos sócios sobreviventes, os do sócio falecido, os dos herdeiros, os de terceiros… Os interesses em jogo nem sempre são convergentes. A título de exemplo, a composição do capital e o grau de importância da pessoa do sócio frequentemente contribuem para a eclosão de tensões que, na prática, podem existir entre a lógica societária e a lógica sucessória. Somente um estudo aprofundado da sucessão dos direitos e deveres relativos à participação social nas empresas familiares permite apreender a complexidade da relação entre o Direito Societário e o Direito Sucessório e, in fine, dominar os princípios, os mecanismos e os instrumentos que permitem conciliar essas duas lógicas no contexto deste sensível modo de transmissão do patrimônio. O domínio dessas interações e mecanismos ajuda a preservar a família de um sem-par de conflitos e a assegurar a próspera continuidade da atividade empresarial desenvolvida em vida do de cujus.

O livro está disponível para a venda pela YK Editora em:
https://loja.ykeditora.com/direito-civil/sucessao-hereditaria-nas-empresas-familiares

Gustavo Cerqueira

  • Professor Titular de Direito Privado na Universidade de Nîmes, França
  • Advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Rio Grande do Sul
  • Doutor em Direito pelas Universidades de Estrasburgo (França) e de São Paulo
  • Diplomado pela Faculdade Internacional de Direito Comparado de Estrasburgo
  • Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
  • Presidente da seção Metodologia comparada do direito civil da Société de législation comparée, Paris
  • Membro do Comité français de droit international privé, Paris
  • Membro associado da Académie internationale de droit comparé, Paris
  • Membro do Instituto de Direito Privado, São Paulo
  • Membro honorário do Instituto Brasileiro de Direito Internacional Privado, São Paulo