Artigo – É possível a realização de escritura, e consequente registro de atos anuláveis? – Parte 1 – Arthur Del Guércio Neto e João Francisco Massoneto Junior.

  em Notarial

Inicialmente, gostaríamos de fazer a seguinte observação: Atos nulos não devem ser praticados por notários e registradores. Nesse ponto, não há divergência. A polêmica surge quando se trata de atos anuláveis.

O tema tem dividido opiniões. Duas indagações são necessárias para começarmos a refletir sobre o assunto. 1)– Existe algum dispositivo legal, no ordenamento jurídico brasileiro, que proíba a prática de ato anulável, ou seria, tão somente, não recomendada a sua realização? 2)– Na falta de proibição legal, ou, no mínimo, de uma posição jurisprudencial a respeito, poderiam os notários e registradores se recusar a realizar o ato?

Pesquisas não externam no ordenamento jurídico brasileiro nenhum dispositivo legal que proíba a prática de atos anuláveis, pelo contrário; existem regras estabelecidas, no Código Civil Brasileiro, que, além de citar alguns casos passíveis de anulação, trazem detalhes e preceitos importantes, que, a nosso ver, demonstram que o legislador admitiu a prática de atos anuláveis.

Vejamos, por exemplo, o artigo 172, do referido diploma legal: O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro”. Convenhamos, para que isso aconteça, certamente o negócio tem que ter sido realizado previamente.

Outro exemplo é o artigo 176, do CC, que, a nosso ver, também reforça o convencimento de que o legislador sempre entendeu possível a prática de ato anulável, do contrário, não teria sentido algum a previsão ali contida, “Quando a anulabilidade do ato resultar da falta de autorização de terceiro, será validado se este a der posteriormente”.

O artigo 176, do CC, se dá, por exemplo, quando da realização de uma escritura pública de venda e compra de pai para filho, onde, um dos irmãos não compareceu dando sua anuência, mas o fez posteriormente, validando o ato. Isso é comum, pois, muitas vezes, um dos filhos está morando fora do país, e não consegue participar do ato, e acaba enviando, posteriormente, sua concordância de forma expressa.

Outro exemplo sobre o dispositivo acima citado, que acontece frequentemente na prática, se dá quando o condômino que não deu a sua anuência no momento da celebração da escritura de venda e compra para terceiro, seja por não estar presente, ou por qualquer outro motivo, declara, posteriormente, e de forma expressa, a sua concordância com a venda realizada, validando totalmente o ato, mesmo antes de qualquer prazo decadencial estabelecido por lei, para anulabilidade do ato.

Pela leitura dos artigos que tratam de anulabilidade, nota-se que existem aquelas que contêm vícios mais graves, como os contidos no artigo 171, incisos I e II. Atos anuláveis contendo esses vícios, certamente não serão realizados por notários e registradores, se cientes de sua existência. Tais vícios, no entanto, podem não ser identificados no ato, e neste caso, certamente não seriam os notários registradores responsabilizados pelo ato, caso não tenham condições nenhuma de saber.

O professor Zeno Veloso (carinhosamente chamado por muitos de nós, seus alunos, de “mestre dos mestres”), ao abordar o tema em recente artigo publicado no Jornal O Liberal, de Belém, além de nos brindar com uma excelente aula sobre nulidade e anulabilidade, chama a atenção para o fato do ato anulável, enquanto não sanada a possibilidade de anulação, tratar-se de negócio inválido, mas ressalta que, desde que nasce e até que sobrevenha a anulação, o negócio anulável é eficaz.

O estudioso Tabelião de Notas José Hildor Leal entende que os negócios anuláveis a que se refere o artigo 171, incisos I e II, do Código Civil, são inválidos; no entanto, alega que outros negócios, embora anuláveis, tal como a venda de ascendente a descendente, venda a terceiros sem a anuência de condômino, ou, ainda, de bem particular sem vênia conjugal, desde que não carreguem em si os vícios a que se refere artigo 171, como incapacidade relativa do agente, erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores, são válidos, até que sejam anulados por sentença judicial. Na visão de Hildor, e de muitos notários e registradores, há atos anuláveis inválidos – os que carregam vício em seu bojo – e atos anuláveis válidos, vale dizer, aqueles que cumprem as disposições do artigo 104: agente capaz, objeto lícito, forma prescrita ou não defesa em lei.

De qualquer modo, o fato é que não há divergência em serem, os negócios anuláveis, eficazes. Assim nos ensina o mestre Pontes de Miranda, que diz: “O anulável produz efeitos. Só os deixa de produzir quando transita em julgado a sentença constitutiva negativa. Então, apagam-se, como se não tivessem sido (eficácia ex tunc), os efeitos anteriores”.

Desse modo, por terem eficácia, e pela falta de proibição legal expressa para a prática dos mesmos, entendemos que não se pode negar a realização de todo e qualquer ato anulável, sob pena de ferir a liberdade contratual das partes. Assim, no nosso entender, o Tabelião terá que analisar caso a caso, para fazer valer as prerrogativas que se esperam da sua atuação, de garantir as vontades das partes.

Com isso, como já dito, não deixamos de reconhecer que pode haver situações em que realmente possa haver a recusa de se realizar o ato, seja por estar enquadrado em uma das hipóteses do artigo 171, do CC, seja pela existência de entendimento jurisprudencial sobre aquele ato específico.

A falta de vênia conjugal, nos casos exigidos por lei, é um exemplo de ato anulável que muitos notários e registradores do Estado de São Paulo se recusam a praticar, mas não somente pelo fato de ser anulável, e sim pela existência de jurisprudência nesse sentido (CSMSP – Apelação Cível: 1000050-19.2019.8.26.0236 / CSMSP – Apelação Cível: 1033886-29.2017.8.26.0114). Reconhecemos que até mesmo a falta de vênia conjugal estaria entre as hipóteses possíveis de se realizar o ato, que poderia ser convalidado posteriormente; no entanto, a existência de jurisprudência em sentido contrário, possibilita a recusa justificada por parte dos notários e registradores.

A título de informação, em nosso país, há décadas, muitos notários e registradores praticam determinados atos anuláveis. Existem Estados que possuem até previsão normativa sobre o tema, a exemplo do Estado de Pernambuco, que traz a seguinte determinação: “O notário não pode recusar a sua intervenção com fundamento na anulabilidade ou ineficácia do ato, devendo, contudo, advertir os interessados da existência do vício e consignar no instrumento a advertência feita” (Código de Normas, art. 221, §2º).

E, para enriquecer um pouco o tema, analisamos como vem sendo tratado esse assunto na prática, ou seja, no dia a dia da sociedade, dos notários e registradores, e, também, como a jurisprudência vem tratando esse tema. Encontramos algumas decisões judiciais, principalmente no Estado de São Paulo, que tratam da possibilidade de se lavrar e registrar determinados atos anuláveis; a mais recente é do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, inclusive, enfatizou que o registro, na falta de prova da comunicação ao interessado na anulabilidade do ato, servirá para o começo do prazo decadencial para se pleitear a anulação do ato (REsp nº 1.628.478 – MG – 2016/0252768-1).

Entendemos que a recusa por parte dos notários e registradores, de praticar um ato anulável que lhe seja solicitado pelas partes contratantes (escritura e registro), mantendo como a única justificativa da recusa o fato de se tratar de um ato anulável, fere a liberdade contratual das partes, contida nos artigos 421 e 422, do CC, além de ir de encontro com as obrigações legais impostas a esses profissionais do direito, por exemplo, a de atender as partes de modo eficiente e adequado, garantindo a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, conforme determina a Lei 8.935/94.

Importante ressaltar que os notários e registradores são os únicos que detêm atribuições legais para a prática de determinados atos, e, ao se recusarem, retiram das partes o direito de praticarem aquele negócio jurídico. Um exemplo bem simples seria a regra contida no artigo 108, do CC, que determina que imóveis acima de 30 (trinta) salários mínimos, salvo disposição legal em contrário, necessitarão de escritura pública para sua validade, assim como, as partes só conseguirão registrar sua aquisição no registro de imóveis.

Isto mostra que, em determinados casos, as partes só terão os notários e registradores para solicitarem a prática do ato, e, ao se negarem a realizar o ato sem que haja expressa proibição legal para tanto, ou, pelo menos, a existência de jurisprudência nesse sentido, estarão prejudicando muito as partes solicitantes, que terão seus direitos totalmente violados.

Logicamente, antes de acatar o pedido, será necessário realizar as devidas orientações a respeito, mas este será o tema da continuação desse singelo artigo, que trará, inclusive, um link de acesso a uma pesquisa realizada com inúmeros notários e registradores do país, sobre a necessidade de publicidade do fato da anulabilidade do ato, tanto na escritura, como na matrícula.

Por ora, a respeito do tema, e tomando por base a pesquisa citada, podemos adiantar que, dos 122 entrevistados até o momento, 120 entendem pela possibilidade de se praticar determinados atos anuláveis, a depender do caso, e com as devidas orientações a respeito, contra 02 entrevistados que acreditam não ser possível lavrar ato anulável, seja qual for. Assim, em relação à possibilidade de se realizar determinado ato anulável, não há muita divergência. A divergência surge em relação a dar, ou não, publicidade sobre a questão da anulabilidade na escritura e na matrícula do imóvel, como veremos no próximo artigo.

Assim entendemos, respeitando as opiniões contrárias.

Arthur Del Guércio Neto – Tabelião de Notas e Protestos em Itaquaquecetuba. Especialista em Direito Notarial e Registral. Especialista em Formação de Professores para a Educação Superior Jurídica. Escritor e Autor de Livros. Palestrante e Professor em diversas instituições, tratando de temas voltados ao Direito Notarial e Registral. Coordenador do Blog do DG (www.blogdodg.com.br).

João Francisco Massoneto Junior – Especializando em Direito Notarial e Registral pela USP – Ribeirão Preto (2019). Especialista em Direito Notarial e Registral, com formação para o magistério superior pela Universidade Anhanguera – Uniderp (2012). Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Norte do Paraná – UNOPAR (2010). Bacharel em Direito pela Universidade Paulista de Ribeirão Preto-SP (2005). Preposto Substituto do Tabelião de Notas e Protesto de Monte Azul Paulista-SP, onde iniciou suas atividades em 1999.

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