A CONCENTRAÇÃO MATRICIAL E A CONFIANÇA NOTARIAL

A CONCENTRAÇÃO MATRICIAL E REFLEXOS NA CONFIANÇA NOTARIAL – por Douglas de Campos Gavazzi

Confiar: É ter fé, entregar aos cuidados, à fidelidade de alguém. É assim que deve ser a relação do cliente com notário.

O usuário busca a serventia notarial visando sempre adquirir segurança jurídica para determinado ato que deseja concretizar. E a segurança jurídica, além de princípio norteador do Direito Notarial, somente se faz possível devido à fé pública delegada pelo ente estatal. O usuário do serviço notarial almeja adquirir um imóvel e obter a chancela “cartorial” de que não terá problemas futuros – aí está a principal função do notário – previnir litígios, fomentar a paz social.

É atributo humano submeter-se à riscos e tolerar-se às incertezas de um negócio imobiliário. A transação imobiliária, por sí só decorre de atividade complexa, não só por sua extravagância documental, mas também por suas fases: sempre há um título aquisitivo de origem pessoal (contrato, escritura, ordem judicial) e a magnitude do direito real (ingresso do documento pessoal no fólio registral).

Pacificação social meio a uma complexidade sócio-jurídica especial é o desafio notarial desempenhada por uma atividade responsável – no dizer de Celso Fernandes Campilongo – “cabe ao notário responder quem tem ou não um direito ou uma expectativa decepcionada pelos fatos, quer em relação a um contrato, quer em relação a uma propriedade.” 1

Nessa linha, a Medida Provisória 656 de 07 de outubro de 2014, legalmente vertida em norma infraconstitucional numerada 13.097 de 19 de janeiro de 2015 (ainda respeitando o descanso legal), determina que todo ato que possa constituir eventual crédito cobrável de proprietário de imóvel, deve estar publicizado na matrícula do respectivo bem, sendo somente assim, então, oponível a terceiros.

Então, o artigo 54 da nova lei reproduz e assim vejamos:

Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: (Vigência)

I – registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;
 

O inciso I, trata do registro em que o proprietário de um bem imóvel, devidamente citado em processo judicial, que verse sobre direitos reais, ou seja, ação aquela que tenha por objeto do pedido a tutela de um direito real, sobre uma coisa. Assim, quem detém direito sobre alguma coisa, móvel ou imóvel, é o legitimado para a propositura da ação real e assim também se legitima ao registro da citação do réu junto ao fólio real, dando publicidade aos adquirentes daquele bem que o proprietário é réu em processo judicial que tem por objeto aquele bem ou outro que venha macular eventual alienação.

O mesmo ocorre se a ação é pessoal reipersecutória, por sua vez, onde o autor busca a a reapropriação de algo que lhe pertence, mas que porém, está em posse de terceiro, a ação reiperseicutória, tem por objeto uma relação de direito pessoal mas que indiretamente vem perquirir a aquisição de um direito real ou dirimir dúvida sobre uma coisa. Aqui, também se legitima o autor a requerer ao registrador de imóveis o registro da citação do detentor do domínio imobiliário. Os artigos 158 e 1592 do código civil brasileiro, tratam da fraude contra credores, sendo assim, a citação do réu em autos de ação pauliana é exemplo próprio do registro de ação pessoal repirerseicutória a ter ingresso no fólio real. Parênteses faço, malgrado a lei refira-se ao registro da citação, penso que o ato seja de averbação, visto não se instituir diretamente um direito real, mas um ato declaratório e assim preparatório de eventual privilégio garantidor, é acessório.

Nesse ponto, surge uma interrogação quanto ao posicionamento futuro de nossos tribunais: o novel ordenamento regra que não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, o que faz com que o ordenamento civil e processual que tratam sobre a fraude ao credor tenham um implemento condicional para caracterização da burla creditória – a publicidade do evento judicial na matrícula registral.

 

II – averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil;

 

O inciso II trata da averbação na matrícula do imóvel, da construição judicial e do ajuizamento de ação de execução em face de seu proprietário. O artigo 615-A do CPC já previa a averbação premonitória no fólio real, porém não muito apregoada.

O Superior Tribunal de Justiça, já havia se posicionado em meados de 2009 – Súmula 3753 – que, para a caracterização da fraude à execução, necessário o registro da penhora do bem ou da prova da má-fé do adquirente. Assim, o inciso II da nova lei, vem ratificar que para paramentar a fraude ao processo executório, imprescindível a averbação do feito no fólio real. O credor, terá que se mostrar sempre atento.

III – averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e

Já o inciso III relata sobre a inscrição na matrícula, por ato de averbação, da restrição administrativa ou convencional ao pleno exercício dos direitos inerentes à propriedade, sejam eles legais ou decorrentes de ordem judicial, ou ainda convencionados por vontade das partes, por ato voluntário, por escritura pública. Fazemos aqui, um comparativo à um antigo brocardo latino muito utilizado pelos processualistas em suas defesas: quod non est in actis non est in mundo4o detentor de um direito ou o órgão coator que determina a restrição tem, então, o dever de prover a publicidade registral à restrição e caso não o faça, entender-se-á que abdicou desse direito.
 

IV – averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei no5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.

O inciso IV aduz sobre a averbação, esta com autorização do juiz, do curso de processo judicial que verse sobre qualquer assunto, porém movido contra o proprietário do imóvel matriculado, mas que ao tempo de sua eventual disposição por alienação ou oneração pudesse reduzí-lo (proprietário) à insolvência civil. A autorização judicial que retrata esse inciso, deverá ser deferida mediante pedido do patrono dos credores ou interessados na demanda e deverá ser apreciada pelo magistrado com destreza e brevidade, pois, caso contrário, incorrerão as partes aos desígnios do parágrafo único da própria lei:

 

Parágrafo único: Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei no 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel. (grifei)

 

 

Assim, não constando o apontamento do fólio real, não poderá ser oposto ao adquirente de boa-fé. A lei ainda retrata em seu artigo 56, que a alienação ou oneração de unidade autônoma integrante de incorporação imobiliária, parcelamento do solo ou condomínio edilício, devidamente registrados no fólio real, não poderá ser objeto de evicção ou de decretação de ineficácia.

Nas lavras de Maria Helena de Diniz, evicção: “vem a ser a perda da coisa, por força de decisão judicial, fundada em motivo jurídico anterior, que a confere a outrem, seu verdadeiro dono, com o reconhecimento em juízo da existência de ônus sobre a mesma coisa, não denunciado oportunamente no contrato” (in “Curso de Direito Civil Brasileiro”, v.3, Saraiva, p. 126). Assim, o terceiro adquirente não será mais evicto, entretanto, os evictores5 do alienante incorporador ou parcelador, ficarão todos sub-rogados no preço ou no crédito imobiliário, entretanto, essa sub-rogação não é automática e depente de interpelação judicial.

Mas o que tudo isso se relaciona à confiança no serviço notarial se o assunto é tão coisa registral? Ora, estamos vivendo talvez, a “descertilização” da pessoa, a partir de então, preocupa-se em fazer da matrícula imobiliária o verdadeiro curriculum do imóvel, para que dela – sui certidune – constem todas as circunstâncias jurídicas relevantes acerca da raiz imobiliária. Então, o notário tem condições de traduzir segurança jurídica ao adquirente com a qualificação e o estudo da matrícula do imóvel objeto da transação, afastando eventuais riscos a que se sujeitava o comprador no sistema modificado.

Com isso tudo, a nova norma que também altera a lei nº 7.433/1985, faz com que a praxis notarial na confecção do instrumento de transferência, torne-se mais rápida e concisa, devendo o preposto do serviço observar o regular recolhimento do imposto de transmissão inter vivos, verificar a situação fiscal do imóvel (débitos de IPTU e tributos federais tais como foro, laudêmio – se for o caso) e, enfim, estudar assíduamente a matrícula do imóvel, que por meio da qual, poderá prover ao comprador, confiança na aquisição, afastando as demais aventuranças.

Trata-se de um novo sistema jurídico imobiliário nacional, que deverá se adapatar ao sortido judiciário brasileiro – inclusive à Justiça do Trabalho – bem como à diversidade sócio-técnico-cultural desse espaçoso território que em alguns recantos rincões (que com desprazer documentalmente pude presenciar) há até mesmo o desconhecimento da própria LRP6.

Confiança ao notário, segurança ao comprador, exaltação ao ofício do registrador.

 

* Douglas de Campos Gavazzi é tabelião substituto em Itapevi-SP. Professor na pós graduação em Direito Notarial e Registral Imobiliário da Escola Paulista de Direito – EPD-SP, do Instituto dos Notários e Registradores do Paraná – INOREG-PR e da UNIOES em Recife-PE. Professor na pós graduação nos cursos PROORDEM e ÊXITO em São Paulo, São José dos Campos, Santos, Campinas e Goiânia-GO.

 

 

 

1CAMPILONGO, Celso Fernandes: Função Social do Notariado: eficiência, confiança e imparcialidade, São Paulo, Saraiva, 2014 (pág 103, 104)

 2 Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.

§ 1o Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.

§ 2o Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.

Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante.

 

3"O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente"

 4O que não está nos autos, não está no mundo.

5Detentores de um crédito – credor 

6Provimento23 de 24 de outubro de 2012 do CNJ, disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/Provimento_%20N23.pdf

 

 
 
 

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EXIBINDO 0 COMENTÁRIOS

  1. Gabriel disse:

    Caro Dr. Douglas;
    Ao que nos parece o novo regramento retira do adquirente o ônus da prova em comprovar, tanto nas tratativas, escritura e principalmente registro, que sempre esteve se valendo da boa fé objetiva e subjetiva.
    Sendo a matéria recentíssima, muita discussão ainda está por vir. Será o fim das certidões pessoais para fins imobiliários? Será que o lapso temporal entre a válida citação do “alienante” e a devida averbação na matrícula acerca da processo (que poderia atingir o bem de raiz – seja por comunicação judicial ou protocolo espontâneo do mandado de averbação) não caracterizará na prática facilidade para que o demandado transacione seu imóvel para “terceiros de boa fé profissionais”? Ou seja, será que o intuito da legislação em pacificar a situação do adquirente (ao dispensá-lo de providenciar certidões, e enfrentar processos que na maioria das vezes sairia sem o bem) não ajudará ainda mais a ocorrência de fraudes à execução e aos credores (p. ex) em prejuízo quase que exclusivo do autor da demanda que eventualmente não solicitar a averbação da ocorrência na matrícula?

    Saudações, e parabéns pelo artigo.

  2. J. Hildor disse:

    Muito bom, Douglas. O tema é atual, e muito pertinentes as tuas colocações.

  3. Douglas Gavazzi disse:

    Oi Hildor…
    Muito obrigado pelas palavras. Temos muito que aprender sobre o assunto, aguardo ansiosamente a posição dos nossos tribunais. Há estudiosos que defendem a já existência do princípio e que, assim, nada mudou: http://cartorios.org/2015/02/03/concentracao-na-matricula-e-o-entulho-informativo/
    Abraço!

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