O Artigo 117 do Código Civil e a procuração

 José Flávio Bueno Fischer

 

 

A procuração para a venda de imóvel é um dos atos mais praticados no dia a dia do Tabelionato. Com o advento do novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), tivemos algumas modificações importantes nesse assunto.

O Código novo, em seu Artigo 117, “caput”, dispõe: “Salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo”.

O novo Código, nesse contexto, não reproduziu a norma contida no Art. 1.133, inciso II, do Código Civil de 1916, que vedava a compra, pelos mandatários, dos bens de cuja administração ou alienação estivessem encarregados.

Quanto à procuração em causa própria, já com previsão legislativa no Código de 1916 (CC/1916 1317 I in fine), hoje ela está prevista no Art. 685 do novo Código: “Conferido o mandato com a cláusula “em causa própria”, a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais”.

Regra geral, o autocontrato não é válido, não devendo o representante contratar consigo mesmo, salvo se o permitir a lei, o representado ou o contrato. No caso do Artigo 117 do novo Código, temos uma previsão expressa de possibilidade de realização do autocontrato, bastando, para tanto, que, por ocasião da outorga da procuração, o mandante declare que autoriza, expressamente, o mandatário, a adquirir o imóvel cujos poderes de venda lhe foram outorgados, para o seu próprio nome, ou transmiti-lo a terceiro.

É importante esclarecer que este tipo de procuração, embora tenha aparência de mandato em causa própria, não se trata dessa espécie, pois é passível de revogação, via de regra, e se extingue com a morte de uma das partes. E se encaminhado ao registro imobiliário, visando a transferência da propriedade, não será recepcionado. Ou seja, se o procurador portar procuração com essa declaração, para a efetivação do negócio de compra e venda, necessariamente deverá fazê-lo através de uma escritura pública (ressalvada a exceção quanto ao valor do imóvel prevista no Art. 108 do novo Código Civil), que então será o título hábil para o ingresso no registro imobiliário competente.

Até mesmo em relação à procuração com a cláusula “em causa própria”, embora seja terreno fértil para controvérsias na doutrina e na jurisprudência – havendo, aqui no sul, inclusive, previsão normativa expressa dando a entender que ela equivale ao título para o registro imobiliário, desde que observados os requisitos da compra e venda (a coisa, o preço e o consentimento), devendo ser recolhido o Imposto de Transmissão, e sendo os emolumentos os da escritura com valor determinado -, encontramos entendimento de que ela não é, por si só, ato que importe transferência de domínio, apenas conferindo poderes ao procurador para a transferência da propriedade. Nesse sentido, cabe citar que a procuração em causa própria não está arrolada entre os atos ou negócios jurídicos passíveis de registro ou averbação no registro imobiliário, discriminados na Lei dos Registros Públicos. Face isso, entendemos que considerar a procuração em causa própria como título passível de registro não é a melhor prática. O recomendável, sempre, é que a celebração e formalização do negócio de compra e venda se dê por escritura pública de compra e venda, observados e cumpridos todos os requisitos da lei. Não é por acaso que o instituto já está em desuso há muito tempo.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no julgamento da Apelação Cível Nº 70051135143, Décima Nona Câmara Cível, Relator: Victor Luiz Barcellos Lima, julgado em 24/09/2013, assim se manifesta em parte da decisão, quanto à procuração em causa própria: “ …. não havendo dúvida de que a procuração outorgada se deu em causa própria e que, nos termos da jurisprudência da Câmara, a outorga tem apenas aparência de procuração, consistindo, em verdade, em ato translativo de direitos a habilitar o promitente comprador a praticar todos os atos necessários à outorga de escritura pública, pagamento do imposto por transmissão do bem imóvel, e subsequente registro imobiliário…(grifos nossos).

Examinadas essas peculiaridades na procuração para a venda de imóvel, fazemos um questionamento: e se ela não contiver declaração expressa do outorgante, com base no Art. 117, autorizando o mandatário a adquirir o imóvel em seu próprio nome, ele estará impedido de fazê-lo? Entendemos, salvo melhor juízo, que não, ou seja, que ainda assim o procurador poderá escriturar o bem para o seu próprio nome, pois a ele foi dada a livre escolha quanto ao futuro adquirente do bem (desde que não haja previsão expressa contrária na procuração ou na lei).

Cabe pontuar aqui, que ainda na vigência do Código de 1916, com a previsão contida no Art. 1.133, II, acima reproduzida, que proibia a compra, pelos mandatários, dos bens de cuja administração ou alienação estivessem encarregados, o STF entendia, em matéria sumulada (STF 165), que essa restrição não alcançava a venda pelo mandante ao mandatário, admitindo o contrato consigo mesmo. Dispõe a Súmula citada: “A VENDA REALIZADA DIRETAMENTE PELO MANDANTE AO MANDATÁRIO NÃO É ATINGIDA PELA NULIDADE DO ART. 1133, II, DO CÓDIGO CIVIL”.

Diante das questões propostas, e face à previsão existente no Artigo 117 do novo Código Civil, concluímos, respeitadas as opiniões contrárias, que, em sendo vontade do mandante da procuração para a venda de imóvel, é sempre recomendável inserir a sua declaração, autorizando o mandatário a escriturar o bem para o seu próprio nome. Entretanto, a inexistência de tal declaração no instrumento não é impeditiva da outorga da escritura para o nome do mandatário. Ele poderá transferir a propriedade do bem para o seu próprio nome, agindo em representação do vendedor para a venda e em nome próprio para a compra.

Tecemos por hora essas considerações, sabendo que a discussão sobre a matéria seguirá, felizmente, para enriquecer cada vez mais nosso dia a dia notarial.

 

 

1 – JUNIOR, Nelson Nery e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 8. ed., rev., ampl. e atual, até 12.07.2011. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

 

2 – Site do Supremo Tribunal Federal –  http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_101_200. Acesso em 19 fev. 2015

 

 

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  1. Edson Vanderlei de Souza disse:

    Dr. José Flávio, quero questiona-lo no sentido da discussão que poderá ocorrer no caso de a procuração não contiver expressamente a autorização do mandante para que o mandatário possa transferir o imóvel para o seu próprio nome, pois se assim o fizer e o mandante reclamar, este irá alegar que não autorizou e àquele (mandatário) irá alegar que não continha na procuração vedação expressa quanto a proibição dele transferir o imóvel para o seu próprio nome, caracterizando caso de omissão, não parece temerário aceitar tal procuração, já que um dos princípios da atividade notarial é zelar pela segurança jurídica nas relações de terceiros quando intervém o Tabelião.

  2. Flavio disse:

    “Caro Edson, obrigado pelo questionamento. Certamente é função do tabelião primar pela segurança jurídica em todos os atos nos quais intervém e pratica. Porém, inexistindo vedação legal para a prática do ato pretendido, e bem assim, não havendo disposição expressa na procuração para a venda de imóvel quanto ao futuro adquirente, entendemos que recusar um mandato nesses termos poderia representar um entrave à liberdade contratual, à autonomia da vontade e à geração de recursos que movimenta a economia. Somado a isso o fato de que cabe ao tabelião orientar e assessorar os contratantes nas negociações imobiliárias a que pretendam dar curso, e na medida do possível não inviabilizá-las, desde que respeitados os limites da lei. Futuras e eventuais alegações de mandante e mandatário, neste caso, deveriam ser amparadas tanto no fato da inexistência, hoje, da restrição do art. 1.133, II, do Código de 1916, que proibia a compra, pelos mandatários, dos bens de cuja administração ou alienação estivessem encarregados, quanto da matéria sumulada pelo STF, citada no texto”

  3. Edson Vanderlei disse:

    Obrigado Dr. José Flávio pela resposta e pelos ensinamentos sempre oportunos por sinal. Para continuidade da boa discussão entendi que se na procuração constar somente os poderes para: “vender, ceder, transferir, ou por qualquer outra forma ou título alienar ou onerar, a quem quiser, o seguinte bem imóvel: Um Terreno…”, mesmo assim o mandatário poderá transferir o imóvel para o seu nome, agindo e assinando em nome do mandante como vendedor e agindo e assinando em seu nome como comprador, não importando ainda se a procuração foi ou não outorgada em caráter irrevogável e irretratável, livre de prestação de contas. Por força da inexistência de restrição (Art. 1.133, II, do Código Civil de 1.916) e da permissão da súmula 165 do STF e por força do Art. 117 do NCC, entende-se que não há proibição (legal, do representante ou contratual), há então permissão, mesmo que não expressa, pois os poderes versam sobre a transferência do imóvel para quem quiser, estendendo-se a interpretação da transferência também para o próprio nome do mandatário, já que não se outorgou o contrário. O mandante é quem deve estar atento, orientado pelo Tabelião, pois se a procuração for outorgada meramente para que se venda o imóvel a quem quiser, no caso de uma viagem longa do mandante, não constando na procuração os termos de “em caráter irrevogável e irretratável, livre de prestação de contas”, o mandatário poderá transferir este bem para o seu nome, e na volta do mandante deverá prestar conta de seu ato entregando ao dono do imóvel o preço da venda que realizou, pois tinha poderes para vender o imóvel para quem quisesse, não havendo proibição (legal, do representante ou do contrato) que o impedisse de transferir o imóvel para o seu próprio nome, uma vez satisfeito do preço da venda autorizada, não cabe ao mandante questionar o mandatário pelo opção que fez, pois se tivesse transferido o imóvel para qualquer outra pessoa, ainda assim deveria prestar conta de seu ato.

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