Testamento que seria cerrado

 
Naquele dia chovia rios na ante-sala do sertão sergipano. Um casal viera do sul do estado, em busca de sigilo, lavrar seu testamento.
 
Escolheram o cerrado, após eu discorrer, didaticamente, sobre as espécies previstas na lei.
 
Ilustrei que poderia, devidamente autorizado por eles, minutar os termos do ato, mas na condição de notário lavraria publicamente somente um auto de aprovação.
 
Chovia desbragadamente, reitere-se.

Lendo ensinamentos do colega Luis Carlos Poisl e comentários do Ceneviva, preparava-me para o ato sacro, eivado de liturgia.
 
Sobre a mesa, alguns apetrechos, além da caneta: barras de lacre vermelho; novelo de fio de linha vermelha resistente; agulha; vela com castiçal e fósforos; tesoura para cortar o fio de linha; carimbo do tabelionato e respectiva almofada; envelope resistente, tamanho oficio, para colocar a cédula depois da aprovação, a fim de melhor protegê-la. 
 
As bagas d"água, em caudal, já superavam o meio-fio, avançando sobre a calçada. Relâmpagos. Trovões.
 
E as testemunhas que não chegavam? 
 
Após alguma longa espera, partiu a esposa do testador, de táxi, em busca delas.

Depois de farta meia hora, estavam devidamente acomodados na pequena sala da serventia testador, testadora e as testemunhas.

Minutava eu as disposições testamentárias. Todavia, tabelião novato, esquecera-me da pergunta necessária: "- O senhor e a a senhora lerão e assinarão os termos de seu testamento?" Enfim, pergunta difícil de ser feita, previamente à lavratura de qualquer ato notarial, exceto se as partes já se adiantam. Não, o testador não sabia nem "desenhar" o nome, conforme segredou-me, algo comovido.
 
Uma pena. Tive de abandonar as palavras sábias do Poisl, dobrar silenciosa e demoradamente a folha com sua mensagem encaminhada dedicadamente para o Cartório-BR*, e abrir o Código Civil, para rápida revisão das disposições acerca do testamento público.
 
Algo consternado, contentei-me com o público mesmo, conquanto desejasse seguir à risca a liturgia sugerida pelo colega gaúcho Poisl, resumida em artigo publicado no site do Colégio Notarial do Rio Grande do Sul:
 
"Tendo em mãos o papel, em geral constituído da folha almaço, e, mais raramente, de mais outras folhas, o tabelião dobrará o conjunto no meio somente para que a dobra marque a metade das folhas. Abrindo-as, dobrará a parte de cima de modo que ela vá até a marca da metade. Depois tomará a parte de baixo e também a dobrará até a marca da metade, encostando-a na fimbria da parte de cima. Fará então a última dobra, no meio, de modo que as folhas adquiram um formato tipo envelope de oficio. Ela terá um tamanho um pouco menor do que o de um envelope ofício.
 
Então o tabelião cortará do novelo ou carretel um fio de linha vermelha de mais ou menos um metro e meio de comprimento, enfiando-o na agulha, até emparelhar as extremidades. Fará um nó nestas, para que o fio duplo não escape do primeiro furo que fizer. É aconselhável que isto já tenha sido feito antes de começar a solenidade, para ganhar tempo. Com a agulha passará todo o fio duplo duas vezes pelo papel a mais ou menos um centímetro do ângulo, num dos cantos localizados na dobra que corresponde à metade da folha. Depois passará o fio, duas vezes, da mesma forma, no canto mais próximo, mas começando do outro lado, de modo que a linha passe transversalmente sobre a fresta da folha. Depois passará a linha, duas vezes, em um furo feito com a agulha mais ou menos no meio do comprimento da folha, a um centímetro da borda que tem aí uma fresta no papel ao comprido, mas também do outro lado. Depois no canto seguinte desse comprimento da folha dobrada, mas sempre do outro lado. Enfim, no último canto, também do outro lado. Sempre duas vezes. Neste último canto terminará a costura com um nó na linha. Cuidará que a linha esteja bem esticada, sempre. Cortará a sobra. Terá, assim, feito a costura com cinco furos, impedindo que o papel possa ser aberto sem rompimento da costura.

Feito isto, será a vez do lacre. Convém que a mesa esteja protegida com um jornal aberto ou outra coisa, porque o lacre pode respingar nela. Ao fogo da vela ou do isqueiro será amolecida a extremidade da barra de lacre e neste esfregado um dos pontos da costura, ajeitando-se depois o lacre com os dedos para que cubra fartamente os dois lados desse ponto. Apõe-se o sinete em ambos os lados, ou a impressão digital. E assim se procede em todos os cinco pontos de costura. Pode-se também deixar pingar o lacre sobre cada ponto, de ambos os lados. Cada um tem o seu jeito próprio de lacrar.

O testador e as testemunhas vão achar muito interessante esta fase. É até melhor usar uma vela e não o isqueiro, porque isto empresta uma aura mística à cerimônia, valorizando o ato.
 
Esfriado e endurecido o lacre, escreve-se em uma face do papel: "Testamento de Fulano, por mim aprovado nesta data perante o testador e as testemunhas que assinam comigo, e que cosi com cinco pontos de linha vermelha e lacrei com cinco pingos de lacre vermelho." Lugar, data, assinaturas. Carimbo do tabelião. Por haver pouco espaço, pode isto ocupar os dois lados."
 
E o sábio colega ainda pontifica, cauteloso:
 
"O descrito neste último período não é uma obrigação prevista na lei. É uma invenção minha, recomendável porque comprova que todos os atos, de fechamento, costura e lacre foram praticados à vista do testador e das testemunhas. Sem a declaração e suas assinaturas, feitas após a costura e o lacre, poderia alguém entender que as testemunhas se tenham afastado do recinto depois de assinado o auto de aprovação, com prejuízo do restante da solenidade." 
 
***
 
Contudo, volvamo-nos, cansado leitor, para a chuva e o testamento do sereno casal sergipano, para dizer que, após alguma reflexão, o testador e a testadora resignaram-se com o testamento público, posto que ansiassem pelo cerrado.

Assim, lavrei dois testamentos, uma para cada um, com suas respectivas disposições, passando ao largo da vedação da lavratura do testamento conjuntivo, seja ele, no dizer do art. 1.863 do Código Civil de Reale, simultâneo, recíproco ou correspectivo.

Após a conclusão do também solene e nobre ato, confessaram-me ter simpatizado sobremaneira com os preparativos do cerrado e que em princípio estranharam a presença da vela.
 
Mas garanti: " – Defendo o sigilo do testamento, embora a lei o diga público. De tudo quanto consta aqui, somente vocês e as testemunhas têm e terão ciência. Vão tranquilos. Certidão para estranhos somente com ordem do Juiz!"
 
E foram-se felizes, talvez com um estranho sobrenome ecoando na mente: Poisl.

________

* Fórum de discussão virtual.

 

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EXIBINDO 0 COMENTÁRIOS

  1. Flavio Fischer disse:

    Parabéns pelo belo texto e merecida homenagem ao querido mestre POISL

  2. Lafaiete Luiz disse:

    Caro Flavio Fischer, agradeço o honroso elogio. De fato trata-se o colega Poisl de um querido mestre, dono de larga experiência e sabedoria ímpar. Abs.

  3. ALOISIO SACRAMENTO disse:

    Parabéns pelo texto. Confesso ao amigo e mestre, que como Tabelião novato, aprendi muito com seu texto a respeito do Testamento Cerrado.
    Continue nos brindando com sua sabedoria.

  4. Paulo Ferreira disse:

    Pois,l
    O cerrado, nem com chuva, nem com sol. Nem mesmo com nuvem, no árido cerrado, no frio do sul, ou no molhado março do sudeste. Livrai-me Senhor do cerrado. Liturgia bonita fica na igreja e no belo texto do Lafaiete, homem de letras belas e do humanismo justo.

  5. Lafaiete Luiz disse:

    Caro Aloisio Sacramento, penso que o maior momento da atividade tabelioa é a solenidade da lavratura de um testamento. Abs.

  6. Lafaiete Luiz disse:

    Nobre colega Paulo Ferreira – gestor do 26 de Notas, talvez o mais prolífico blog notarial do país, hoje -, conheço suas lúcidas críticas ao testamento cerrado, notadamente pela insegurança jurídica que ele gera. Todavia, acredito que já temos ferramentas digitais hoje que possibilitam inovação legislativa, permitindo-se criação de uma espécie de testamento cujas características se situem entre o particular o público. É esperar pra ver.

  7. J. Hildor disse:

    O texto do Lafaiete é tão bom que deveria ser mais frequente aqui no blog notarial.
    A lembrança aos ensinamentos do Poisl no grupo cartório BR veio emoldurada num texto saboroso, leve, limpo, didático, mesclado de saber e humor.
    Que venham outros!

  8. Lafaiete Luiz disse:

    Amigo J. Hildor, são palavras sinceras como as suas que movem positivamente os que lidam com as palavras, seja por mero deleite, seja por ofício mesmo; esta última perspectiva eu queria aos 15, 16, mas o implacável curso da vida quase sempre altera o que um neófito planeja, lendo coisas como Introdução ao Mundo do Romance, do intelectual paranaense Temístocles Linhares (eis aqui a importância de uma boa biblioteca nas escolas!). Mas a verdade, J. Hildor, é que o seu texto bem como o de tantos outros colunistas é que provocam a enxurrada de leitura deste blog!

  9. Jean Karlo Woiciechoski Mallmann disse:

    Ótimo texto!
    Confesso que acho muito interessante o procedimento, realmente místico, do testamento cerrado! (todo Tabelião deveria passar por essa experiência uma vez na vida pelo menos).

    De outra banda, no sentido de preservar o sigilo do testamento, em que pese não haja lei stricto sensu disciplinando a matéria no Brasil, a Consolidação Normativa Notarial e Registral do Rio Grande do Sul – CNNR/RS, assim como já preveem algumas legislação alienígenas (a exemplo do Código Notariado Português – art. 176 e Lei do Notariado Espanhol – art. 226), é bem avançada nesse ponto:

    Art. 637, CNNR/RS – Qualquer pessoa poderá requerer certidão, verbalmente, sem importar as razões de seu interesse.
    § 1º – Enquanto vivo o testador, só a este ou a procurador com poderes especiais poderão ser fornecidas informações ou certidões de testamento.
    § 2º – Para o fornecimento de informação e de certidão de testamento, no caso de o testador ser falecido, o requerente deverá apresentar ao tabelião a certidão de óbito do testador.

    Grande abraço!

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