O TIME DO CARTÓRIO E A BOLA NA TESTA DO PROMOTOR

Muito se ouviu falar, pelas bandas do Cerro Branco, onde nasci e me criei guri chucro, de um time de futebol de salão que assombrou por aquelas terras, porque não perdia nunca, não tanto pelo pouco que jogava, mas muito mais pelo tanto que batia, assim como os valentes gauleses de Uderzo e Goscinny, que inspiraram o nome do time – Veteranix. E todo mundo sabe que em caso de briga o placar não conta.

E todo mundo sabe, também, mas não custa lembrar, que os corajosos Asterix e seus amigos, entre eles Obelix, o carregador de menir; Abracurcix, o chefe desastrado, e Chatotorix, o bardo chato, bom companheiro, somente têm medo de uma coisa: que o céu lhes caia sobre as cabeças.

Mas, voltando ao time, naquele tempo já havia energia elétrica na vila, 24 horas por dia, passada a fase jurássica quando do escurecer às dez da noite a luz era gerada por um motor à gasolina. Então, se podia agora futebolar até altas madrugadas, numa quadra de cimento bruto, áspero primeiro, e com o tempo alisado por cabeças duras, joelhos inchados, cotovelos em carne viva, caras e bundas raladas. A maioria jogava de pés descalços, por falta de congas, ou guides, ou kichutes, ou sei lá o nome daquelas botinas que antecederam os atuais e confortáveis tênis.

O Veteranix era o time do cartório, e o quinteto era formado por quatro, eu e mais um ou dois, inclusive o juiz de paz. Os outros eram peso morto, a começar pelo goleiro, muito largo; a bola batia nele quando não entrava pelo único lugar provável: o meio das pernas, e por isso ficou conhecido como Abracurcix. Para não destoar, Obelix, o “frente”, tinha mais de 100 quilos, e se alguém achar um exagero, saiba que estou falando da perna esquerda do homem, que disparava torpedos tão pesados quanto um menir. O resto era contrapeso.

Era um time pesado, mas incompleto.

A quadra ficava ao relento, cercada de tela até uns dois metros de altura, entre a praça e a igreja, à beira da estrada de chão batido. Daí que um dia a bola foi chutada pela canhota mortífera por cima da cerca, justo na hora em que passava um caminhão, levando um caroneiro na carroceria. A bola pegou na testa do magro e derrubou-o do veículo, que seguiu viagem. Tonto – qualquer outro teria desmaiado – o sujeito levantou-se, sacudiu a poeira, deu a volta por cima, pegou a bola, trouxe-a para a quadra, e quando pensamos que fosse tirar satisfações, perguntou se podia jogar conosco. Percebendo que era um duro na queda, ou ao menos um cabeça dura, o aceitamos no grupo.

Mas, para fazer parte do time tinha que ter alguma atividade no cartório, e por isso foi nomeado promotor “ad-hoc”, vacante pela morte do último indicado.

Para quem não sabe, nos cartórios dos distritos gaúchos, até pouco tempo atrás, ou ainda até depois da vigência da Lei 8.935/94, a conhecida Lei dos Notários e Registradores, o Código de Organização Judiciária do Estado do Rio Grande do Sul permitia a nomeação dos chamados promotores “ad-hoc”, para que oficiassem nos processos de habilitação de casamento, fazendo vezes de Ministério Público.

Para nós, o sujeito caiu do céu – ou do caminhão, está bem! E com isso completou-se o time.

Em razão da cabeça dura e do bigode cor de fogo e chato porque tocava gaita e violão e cantava muito desafinado nas festas depois dos jogos, mas era um bom companheiro, passou a ser Chatotorix, como o bardo gaulês. Por várias vezes quase arrebentou a cabeça, batendo no cimento, tal o ímpeto com que se atirava de corpo e alma ao jogo, mas no máximo desmaiava, se recuperava, tornava a bater a cabeça e a perder a memória e a recuperar-se outra vez, e no fim o perigo era rachar a cancha, porque a cabeça era dura, mesmo.

E assim foi por quase uns vinte anos. O time terminou quando as pernas, cansadas de correr, perderam para o tranco da idade. Morreu o time, ficou a lenda, a memória dele, e a indestrutível amizade daquele grupo.

Agora, quando num outro dia eu escrevi sobre os chatos de cartório, o meu amigo do bigode outrora cor de fogo, hoje branco, insinuou que eu pudesse ter falado dele, como se fosse um chato de cartório. Não, não, de modo algum, eu não falava do meu bom amigo. Eu me referia a um outro chato.

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  1. ilceo disse:

    Tá bom! Eu não sou o chato de cartório. Fui promovido a Chatotorix. E eu que pensava no´início da estória, e pensando já exercitava meus músculos, que fosse o Asterix, o bravo, o destemido, o gostosão. Mas não esqueças, meu caro, que o teu bandoneon tocava apenas uma música, nas nossas festanças pós-vitória do Veteranix. Enquanto isso, minha sanfona executava as mais melodiosas músicas do nosso cancioneiro gaúcho. Nas verdade, três apenas. O Boi Barroso e mais duas. Além do mais na tua única e exclusiva música a primeira estrofe, o estribilho, a segunda, a terceira e todas as demais estrofes eram todas iguais. Esqueceste? Eu não esqueci. Como não esqueci o dia em que estávamos tão elevados nos níveis alcoólicos que musicamos com a maior harmonia e cantamos entusiasticamente uma propaganda de carro, se não me engano, de um Corcel. Um folheto que estava jogado no chão lá no Valniso. Lembras? Ou não foi bem assim?

  2. José Hildor Leal disse:

    O comentário do grande amigo Ilceo indica que ele se reconheceu no personagem da história. Claro que trata-se de uma brincadeira entre quase irmãos de verdade, que em verdade éramos naquele time, pela união do grupo. Por isso o time não perdia nunca (ou cá entre nós: não perdia nunca quando não jogava).
    Mas é verdade que o tocador de bandoneon era mais que sofrível, ainda que só tocasse um único arremedo de música, alguma coisa que se as pessoas fossem dançar teriam que fazê-lo em debalada carreira, tipo fugindo do leão, e o leão atrás. O gaiteiro sim, era de primeira linha, indo muito além do “Boi Barroso”, passando por todo o cancioneiro gaúcho, além de qualquer música erudita ou popular. Nunca vi ninguém tocar o “Brasileirinho” da forma como o homem tocava (e toca, acredito), na gaita. No violão, nem se fala.
    Também é verdade que um dia, depois do jogo, depois do churrasco, depois de algumas “geladas” (era um dia – naverdade uma noite – muito quente, por isso a desculpa para a cerveja) conseguimos não sei de que jeito musicarmos, cantando como se tivesse havido muito treino, um folheto que ensinava como pilotar uma motocicleta (não era sobre o velho e bom “Corcel”, não). Mas era sobre veículo, e o engano é compreensível, 30 anos depois. Aliás, lembro como se fosse hoje, ou como se fosse a trinta anos, que minha memória recente é ruim, mas a memória passada é de um elefante (os elefantes jamais esquecem) que naquela noite “dei de relho”, na trova, no Maia (que logo depois daquilo veio a morrer, coitado, ainda muito jovem, mas não é verdade que tenha sido pela trova), irmão do Loreno Maia.
    Claro que lembro… tudo ali no “Bar Central”, no nosso amigo Valniso. Ou como costumava dizer o Pedro, grande lateral direito: “Bar Central”, ao lado do “Cartório Lateral” (o cartório ficava ao lado do bar, mas também não é verdade que houvesse uma passagem secreta que fosse dar direto na reserva de cerveja gelada do Valniso).
    Claro que lembro… bons tempos! Bons tempos!

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