Um homem a ser lembrado, uma história para repetir

Um homem a ser lembrado, uma história para repetir

 

Uma das surpresas de Salamanca é a biografia de Miguel de Unamuno, reitor da Universidade a partir de 1901.

Eram tempos conturbados. A Espanha vivia o movimento republicano. A partir de 1917, os comunistas desejam conquistar a Espanha. Em 1936 eclode a guerra civil que levaria Franco ao poder em 1939.

Unamuno graduou-se em Filosofia e Letras e apresentou tese sobre a língua basca, pois nascera em Bilbao. Defendia evidentemente a possibilidade de o Euskera basco conviver com o castelhano.

Ingressa na Universidade de Salamanca para ensinar grego. No plano político, participa de grupos socialistas, mas decepciona-se. Mesmo assim, em 1914, é destituído da reitoria da Universidade por razões políticas e condenado por críticas ao Rei a 16 anos de xilindró –sentença que não cumpriu.

Torna-se um símbolo dos republicanos e liberais.

Em 1931, eleito conselheiro da cidade de Salamanca dá uma de maluco-beleza e proclama a república na cidade. A via política-eleitoral termina dois anos depois. Desencantado, desiste de concorrer a reeleição e publica um manifesto com críticas a tudo e todos: igreja, classe política, o governo, as reformas.

O bicho pega em 1936, com a Guerra Civil Espanhola. Unamuno apóia inicialmente os franquistas, mas logo, em vista da perseguição a intelectuais, muitos deles seus amigos, vai para a oposição. Vejam que encruzilhada: não apóia a República, da qual se desiludira; não apóia o Rei, a quem responsabilizava pela opressão e as mazelas espanholas; e não apóia os franquistas porque eram fascistas.

Mas naquele tempo a ninguém era dado o luxo de ficar em cima do muro. De que lado ficar, então?

O destino se encarregou de encaminhar-lhe a escolha. E agora a história fica bonita e vocês verão a grandeza de Unamuno. Minha fonte é a Wikipédia espanhola, que copio e traduzo:

“Durante o ato de abertura do curso acadêmico (que coincidia com a celebração da “Fiesta de la Raza“), em 12 de outubro de 1936, vários oradores discursaram sobre a “anti-Espanha”.

Unamuno, indignado, tomava notas, sem intenção de falar, mas levanta-se e pronuncia um discurso apaixonado: “Se ha hablado aquí de guerra internacional en defensa de la civilización cristiana; yo mismo lo hice otras veces. Pero no, la nuestra es sólo una guerra incivil. (…) Vencer no es convencer, y hay que convencer, sobre todo, y no puede convencer el odio que no deja lugar para la compasión. Se ha hablado también de catalanes y vascos, llamándolos anti-España; pues bien, con la misma razón pueden ellos decir otro tanto. Y aquí está el señor obispo, catalán, para enseñaros la doctrina cristiana que no queréis conocer, y yo, que soy vasco, llevo toda mi vida enseñándoos la lengua española, que no sabéis…”.

Neste momento, o general José Millán-Astray (que nutria um profundo desafeto por Unamuno, já que este o havia acusado de corrupção), pôs-se a gritar: “¿Puedo hablar? ¿Puedo hablar?”.

Sua escolta militar apresentou armas e alguém do público gritó: “Viva a morte!”.

O general Millán declara então: “¡Cataluña y el País Vasco, el País Vasco y Cataluña, son dos cánceres en el cuerpo de la nación! ¡El fascismo, remedio de España, viene a exterminarlos, cortando en la carne viva y sana como un frío bisturí!”.

Estava tão exaltado que não conseguiu seguir o discurso. Na platéia se ouviam os gritos de “Viva Espanha!”.

Os liberais, angustiados, voltaram-se para Unamuno, que disse: “Acabo de ouvir o grito necrófilo e insensato de ’¡viva la muerte!’. Isto soa o mesmo que ‘¡muera la vida!’. E eu, que passei toda a vida criando paradoxos que provocaram a oposição daqueles que não os compreenderam, devo dizer-lhes, com autoridade na matéria, que este ridículo paradoxo me parece repelente. Já que foi proclamada em homenagem ao último orador, entendo que foi dirigida a ele, se bem que de forma excessiva e tortuosa, como testemunho de que ele é um símbolo da morte. E tem mais uma coisa: o general Millán Astray é um inválido. Não é preciso baixar a voz para dizer isto. É um inválido de guerra. Assim também foi Cervantes. Mas os extremos não servem como norma. Desgraçadamente há, hoje em dia, demasiados inválidos. E logo haverá mais se Deus não nos ajudar. Dói-me pensar que o general Millán Astray possa ditar normas de psicologia de massas. Um inválido que careça da grandeza espiritual de Cervantes, que era um homem, não um super-homem, viril e completo apesar de suas mutilações, um inválido, como disse, que não disponha desta superioridade de espírito, deve sentir-se aliviado vendo como aumenta o número de mutilados ao redor dele. (… ) O general Millán Astray gostaria de criar uma Espanha nova, criação negativa sem dúvida, segundo a sua própria imagem. Ele desejaria uma Espanha mutilada…”

Furioso, Millán gritou: “Morra a inteligência!”.

Tentando acalmar os ânimos, o poeta José María Pemán exclamou: “Não, Viva a inteligencia! Morram os maus intelectuais!”.

Unamuno não se refreou e concluiu: “Este é o templo da inteligência! E eu sou o seu supremo sacerdote! Vocês estão profanando este sagrado recinto. Eu sempre fui, diga o que diga o provérbio, um profeta em meu próprio país. Vocês vencerão! Mas não convencerão. Vencerão porque têm excesso de força bruta; mas não convencerão, porque convencer significa persuadir. E para persuadir vocês necessitam algo que lhes falta: razão e direito na luta. Parece-me inútil pedir-lhes que pensem na Espanha”.

O auditório fica em pé de guerra. A guarda do general Millán espera somente a autorização para fuzilar Miguel de Unamuno.

Mas neste momento, outra pessoa surpreende e demonstra grandeza. A esposa de Franco, Carmen Polo, pega o braço do reitor e o acompanha até a sua casa, rodeados por sua guarda pessoal, o que evita que o incidente acabe em tragédia.

Em outubro, ainda, Franco destituí Unamuno do cargo de reitor vitalício da Universidade.

Decepcionado, desesperado com a situação que vivia o seu país, em novembro Unamuno escreve a seus amigos:

“A barbárie é unânime. É o regime de terror pelos dois lados. A Espanha está assustada consigo mesma, horrorizada. Brotou a lepra católica e anticatólica. Uivam e pedem o sangue de uns e de outros. Assim está a minha pobre Espanha: está sangrando, arruinando, envenenando e enlouquecendo…”

Um mês depois, em 31 dezembro de 1936, durante um encontro com seus amigos, morre Miguel de Unamuno. Foi-se de repente, teve um treco qualquer para poupar-se daqueles tempos de loucura.

Miguel de Unamuno deve viver para sempre. Lembremos de seu exemplo, da sua coragem, da defesa da inteligência, das diferenças e da paz.

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EXIBINDO 0 COMENTÁRIOS

  1. JOSE ANTONIO ORTEGA RUIZ disse:

    Caro amigo Dr. Paulo, o Senhor “atiça” minha impetuosidade “espanhola”, totalmente a mim desconhecida, mas que me atrai como “bêbado à pinga”, por isso, se desejares deixar de maltratar este súdito insignificante, mas buscador da inteligência, da razão e da paz, me brinde (nos brinde) com mais textos da espanha, ou se quizer use meu e-mail para tal, para não apurrinhar os demais (hehehe) Um abraço. É especial a leitura.

  2. Flavio Fischer disse:

    Especial. Poético. Tocante. Parabéns, Paulo, por nos brindar com esse texto. Estou emocionado, também porque acredito nessa luta, agora no meio notarial. Não vamos desistir, NUNCA, porque temos a verdade, a inteligência e a vocação de servir.

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