A Relativização da Unicidade Notarial: Breves….

                                             
A Relativização da Unicidade Notarial: Breves Reflexões sobre o Provimento nº 08/2015

Por Moacyr Petrocelli

Publicado em 11 de fevereiro de 2015, o Provimento nº 08/2015 da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, promete boa repercussão no cenário dos serviços notariais paulistas. Adveio a lume este ato normativo, para alterar a redação das Normas dos Serviços Extrajudiciais do Estado de São Paulo (NSCGJ-SP), especialmente o item 52.2, do Capítulo XIV, que passa a vigorar com a seguinte redação:

52.2. Lavrada a escritura pública, a coleta das respectivas assinaturas das partes poderá ocorrer em até 30 dias, e nessas hipóteses as partes deverão apor ao lado de sua firma a data da respectiva subscrição.

52.2.1. Não sendo assinado o ato notarial dentro do prazo fixado, a escritura pública será declarada incompleta, observando-se a legislação que trata dos emolumentos.

A novel previsão normativa merece ser aplaudida. Mostra, novamente, o espírito de pioneirismo bandeirante na atividade extrajudicial.

Em verdade, o tema desde há muito merecia normatização. Havia legítimo reclamo das entidades de classe sobre a necessidade do estabelecimento de critérios objetivos para que os notários tivessem balizas institucionais de atuação. Afinal, são situações diuturnas nas serventias notariais. Em palavras mais simples, o que se quer dizer é que não pode o notariado deixar de acompanhar a evolução da sociedade e dinamização das relações jurídicas, sob pena de engessar o exercício da função pública notarial.

Com efeito, é cediço que os serviços notariais e registrais em geral estão vinculados ao comando legal. Nesse espírito, sabe-se que não há qualquer disposição legal que vede a lavratura de escritura pública mediante a coleta da assinatura das partes em momentos distintos. Assim, a nova previsão normativa, possibilitou ao notário a flexibilização temporal da coleta das firmas das partes. Passa-se, portanto, a não ser mais obrigatória a presença simultânea de todas as partes para a assinatura da escritura pública.

Adequou-se a atividade notarial ao dinamismo da vida moderna, possibilitando que a função pública notarial alcance com mais facilidade suas missões institucionais para a garantia da autenticidade, publicidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

Nesse particular, um dos princípios sempre destacados como congênito à atuação do tabelião de notas é o da unicidade do ato notarial. Por este princípio, os atos praticados pelos notários devem ser realizados em uma única oportunidade, sem que haja interrupções temporais relevantes.

Sempre houve dificuldade de compreensão dos contornos exatos a serem dados a este princípio. Já é de algum tempo – principalmente para o notariado moderno, e mais ainda para aquele de tipo latino, como é o caso Brasil – que este comando principiológico não está a significar que colhida a vontade das partes, o notário deva desde logo lavrar a escritura pública e finalizar sua atuação notarial. Aliás, sua atuação cautelar, lastreada no saber jurídico e na prudência notarial, indispensável à profilaxia jurídica exercida por este profissional, recomenda que haja prévia audiência das partes, para que possa ser verificada a real intenção negocial dos interessados naquele ato jurídico, captando os desejos e as intenções, para que, após o aconselhamento e assessoria jurídica, o ato notarial seja praticado na melhor forma de direito. Além disso, é sabido que, normalmente, em especial nos negócios jurídicos imobiliários, são necessárias diligências preparatórias à prática do ato ou mesmo providências documentais externas à serventia. Todas essas circunstâncias inerentes à atuação do notário impedem que o ato notarial seja iniciado e encerrado em momento único. Em palavras outras, a lavratura de escritura pública, desde há muito, não pode ser considerada como um simples ato, mas verdadeiro procedimento, com sequência de atos concatenados destinados à consecução do ato-fim.

A rigor, na melhor técnica, o princípio da unicidade do ato notarial sempre teve nítido caráter instrumental. Vale dizer, a lavratura final do ato, sua leitura na presença das partes, a conferência pelos comparecentes e a outorga das assinaturas, é rito procedimental que deve ser uno, guiado pelo notário, praticado de uma só vez, em continuidade.

De todo modo, aponta a doutrina, que o princípio da unicidade notarial pode ser interpretado nessa dupla acepção – abstrata e instrumental.

Mencione-se, a propósito, que nem todos os atos notariais estão submetidos integralmente à unicidade. Veja-se, por exemplo, o caso da ata notarial, em que a própria natureza do ato permite a interrupção e o prosseguimento de sua lavratura. A descontinuidade é traço marcante da ata notarial, afinal, se os fatos se prolongam no tempo, sua captação também arrastará. Lembre-se, inclusive, que a desobediência a este princípio notarial sempre foi um dos traços apontados pelos especialistas para distinguir a escritura pública da ata notarial. Doravante, no Estado de São Paulo, com a nova previsão normativa, esta distinção entre ata notarial e escritura pública tende a não ser mais tão relevante ou, pelo menos, não ser tão intensa.

De fato, o que se pode perceber, sem rodeios, é que o princípio da unicidade do ato notarial tem necessitado abrandamento no dia a dia da serventia notarial.

Não sem razão.

O dinamismo e a complexidade das relações jurídicas contemporâneas reclamam uma atuação prudencial do notário, descontinuada. Tratar, assim, com excesso de rigor a unicidade do ato, no mais das vezes, impede o tabelião de notas de exercer da melhor forma possível seu mister. Noutros dizeres, para que a atuação do notário atenda aos objetivos para quais ela existe no cenário jurídico, a realidade cotidiana da função pública notarial demonstra justamente o oposto da unidade do ato, mormente quanto ao tempo de sua prática.

Foi este o espírito solidificado no Provimento nº 08 de 2015, da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo.

Estabelecida a mensagem exegética trazida pela salutar alteração normativa, convém apurar os principais efeitos notariais práticos da novel previsão. Diga-se: não é nosso objetivo – nem poderia sê-lo – esgotá-los. Todavia, algumas vicissitudes da prática tabelioa podem ser antevistas.

Cabe um alerta prefacial. A possibilidade de coleta a posteriori de assinaturas das partes deve ser vista como medida de caráter excepcional, devendo o tabelião acautelar-se para que o ato seja encerrado, tanto quanto possível, no menor lapso temporal. Isso garantirá a higidez jurídica do ato, e prestigiará a eficiência do serviço prestado. Na verdade, agir dessa forma não é nada mais do que afiançar a segurança jurídica, meta-base do fazer notarial. Nesse sentido, endossamos a posição de Paulo Roberto Gaiger Ferreira: “A melhor técnica notarial impõe que sejam os atos assinados na mesma data da lavratura, mas as atribulações e conveniências de nosso tempo permitem tolerar a assinatura em momento posterior”. (CASSETARI, Christiano (coord. Coleção Cartórios). Tabelionato de Notas. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 76).

Em síntese, a aplicação do permissivo normativo, ou seja, a possibilidade de fracionar a coleta das assinaturas deve ser medida de exceção. Apenas em casos especiais, o tabelião poderá facultar tal providência às partes, ou seja, que o façam dentro do prazo fatal de 30 dias. Enfim, agindo com cautela em casos que tais, o notário evitará situações meandrosas, que não são impossíveis de ocorrer. Imagine-se, por exemplo, que por obra do acaso, a parte da firma faltante venha a falecer. O ato ficaria incompleto, o que impossibilitaria de ser materializada a vontade das partes. São situações que podem aparecer na prática notarial. Por isso, a necessidade de encarar a autorização normativa como atitude excepcional.   

Outra consideração imperativa refere-se à aferição do momento em que o ato notarial está completo para o direito. Não é difícil inferir do direito positivo que o ato notarial encerra-se com “a assinatura das partes e dos demais comparecentes, bem como a do tabelião ou seu substituto legal” (art. 215, § 1º, VII, do Código Civil). Ora, na ausência de assinatura de uma das partes, entende-se que o ato está incompleto, inapto à regular produção de seus efeitos jurídicos. Em realidade, sequer ele existe. Nesses casos, o tabelião declarará a escritura incompleta consignando as assinaturas faltantes. Frise-se, que diante dessa situação, é terminantemente vedado ao tabelião fornecer certidão ou traslado do ato declarado incompleto, salvo por ordem judicial.

Registre-se, ademais, que o novo permissivo deve ser aplicado apenas às escrituras públicas, não sendo correta sua aplicação aos testamentos públicos lavrados pelos tabeliães, dadas as inúmeras formalidades e solenidades previstas pela lei civil para o ato de última vontade. Isto é, a natureza do testamento público reclama a unicidade deste ato notarial, ou seja, sua lavratura nos moldes e requisitos legais, seguida da sua leitura em voz alta e assinatura do testador, das testemunhas e do tabelião (art. 1.864 do Código Civil). Sublinhe-se que a própria alocação normativa do novo item 52.2 está a indicar nesse sentido, já que a norma principal (item 52) fala apenas em “escritura pública”.

Não se pode esquecer, ainda, das implicações relevantes que se terá a respeito da cobrança dos emolumentos pelos serviços prestados. Conforme apontado alhures, o Provimento 08/2015 é categórico em afirmar que “Não sendo assinado o ato notarial dentro do prazo fixado, a escritura pública será declarada incompleta, observando-se a legislação que trata dos emolumentos”.

Destaque-se, pois, que pelo ato notarial incompleto são devidos os emolumentos. A Lei nº 11.331/2002 – que trata dos emolumentos dos serviços notariais e de registro no Estado de São Paulo – é clara ao trazer nota explicativa à tabela incidente ao tabelionato de notas no sentido de que: “Pelo ato notarial declarado incompleto, por falta de assinatura, por culpa ou a pedido de qualquer das partes, será devido 1/3 (um terço) dos emolumentos. Se não for consignado o motivo, o escrevente e o Tabelião responderão solidariamente pela terça parte das parcelas previstas no art. 19, inciso I, letras “b”, “c” e “d”, desta lei”.   

Repare, de imediato, a importância de o notário – ou aquele preposto que pratica o ato notarial – certificar os motivos do seu não encerramento. Deixando de fazê-lo, passará a ser solidariamente responsável pela terça parte dos emolumentos devidos pelo ato (especificamente nas parcelas dirigidas ao Estado, à Carteira de Previdência das Serventias e ao Fundo do Registro Civil).

Diante desses desdobramentos possíveis, no que toca aos emolumentos, parece correto que a cobrança deva ser realizada pelo notário apenas quando encerrado por completo o ato notarial. É dizer, os emolumentos devem ser exigidos no momento em que seja aposta no livro a última assinatura, exaurindo-se a prática do ato.

Seria esta, inclusive, a data correta para lançamento da receita oriunda da prática do ato notarial no livro diário da serventia. É verdade, entretanto, que as Normas de Serviço do Estado de São Paulo preveem que a receita será lançada no dia da prática do ato, ainda que o notário não tenha recebido os emolumentos (item 55, Capítulo XIV, NSCGJ-SP). Todavia, a normativa é clara no sentido de considerar, para os serviços notariais, o “dia da prática do ato” como sendo o da lavratura do ato notarial e da emissão de certidão. Note-se, destarte, que nos casos de coleta postergada das firmas das partes, somente será lícito ao notário emitir o traslado do ato, após este se completar por inteiro, ou seja, após a coleta de todas as assinaturas dos comparecentes. Reforce-se, a propósito, que sendo o ato incompleto, na falta de qualquer assinatura, é terminantemente vedado ao notário que forneça certidões ou traslado daquele ato, salvo mediante ordem judicial. Em suma, a interpretação sistemática do fluxo do serviço notarial leva à conclusão de que o apontamento no livro de registro diário deverá ser feito quando ultimado o ato.  

Deve-se considerar também que, exigir o pagamento do ato no momento da sua lavratura pode gerar imbróglio de difícil solução prática. Imagine, assim, que em uma escritura pública de compra e venda o comprador faça o recolhimento dos emolumentos no dia da lavratura do ato, momento este em que lança sua firma naquele ato notarial. O vendedor, de sua vez, como estava de viagem naquele dia, optou por assinar o ato 10 dias depois, quando de seu regresso. Durante a viagem, pensando melhor sobre a concretização do negócio, resolve por bem não concretizá-lo e sequer aparece no tabelionato. Nesse caso hipotético, tendo recebido os emolumentos no dia da lavratura do ato, é este o termo de referência para que sejam efetuados os repasses dos emolumentos às entidades as quais as parcelas estão previstas em Lei. Aliás, para algumas delas, o recolhimento dá-se semanalmente (art. 12, inciso I e III, da Lei nº 11.331/2002). Enfim, pode ocorrer de o titular daquele serviço notarial já ter realizado o recolhimento das guias àquelas entidades. Declarado a posteriori o ato incompleto, como proceder à devolução para o usuário dos 2/3 que lhe são de direito? Certamente não será questão fácil de ser solvida.

Por tudo isso, parece mais cautelosa a atitude de cobrar os emolumentos quando da assinatura da última parte. Em casos tais, para que se evitem contratempos, seria de bom tom que o notário, quando da audiência inicial das partes e diante da verificação da possibilidade de se aplicar a nova regra – ou seja, a coleta de assinatura em até 30 dias da lavratura do ato –, esclarecer aos interessados a existência do prazo fatal, e informá-los de que ultimado o termo final sem que todas as firmas sejam apostas no ato, este será considerado incompleto, incidindo, pois, a terça parte dos emolumentos devidos para o caso.

Outro caminho possível, seria a exigência pelo notário do depósito prévio do valor dos emolumentos.

A Lei nº 11.331/2002 autoriza em seu art. 13 que “salvo disposição em contrário, os notários e os registradores poderão exigir o depósito prévio dos valores relativos aos emolumentos e das despesas pertinentes ao ato, fornecendo aos interessados, obrigatoriamente, recibo com especificação de todos os valores”.

Apesar de ser este procedimento mais usual na serventia imobiliária, devido ao próprio procedimento registral típico do ofício predial, as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo permitem que os notários adotem o procedimento do depósito preambular dos emolumentos devidos. O item 69, do Capítulo XIII, da Normativa dispõe, in verbis:

69. Até o valor total previsto na tabela vigente, poderá o notário ou registrador exigir depósito prévio para a prática de atos solicitados, entregando recibo de depósito provisório.

69.1. Praticados os atos solicitados, o valor pago a título de depósito prévio converte-se em pagamento. Nesse caso, será lavrada, quando for o caso, cota-recibo à margem do ato praticado, e expedido recibo definitivo do valor pago, devolvendo-se, também, eventual saldo ao interessado.

Diante da nova possibilidade de coletar assinaturas em momento posterior à lavratura do ato notarial, certamente a exigência de depósito prévio pelo notário afigura-se como medida mais pertinente, evitando-se problemas futuros no caso de o ato ser declarado incompleto, em razão da ausência de assinatura de qualquer das partes que devam comparecer ao ato. Será, em verdade, cautela providencial para evitar a incidência da norma de responsabilização solidária dos titulares da delegação quanto à terça parte dos emolumentos devidos, nos termos acima ventilados.

Recorde-se, por necessário, que, em termos de escrituração dos livros obrigatórios da serventia, sendo admitido o depósito prévio, será de rigor seu lançamento no “Livro de Controle de Depósito Prévio” (item 44.1, Capítulo XIII, das NSCGJ-SP). Dito de outro modo, nos casos em que se admitir o depósito prévio, este deverá ser escriturado em livro próprio, especialmente aberto para o controle dessas importâncias, recebidas a título provisório, até que sejam os depósitos preliminares convertidos em pagamento dos emolumentos, ou devolvidos, conforme o caso.

Conforme se pode observar nessas breves anotações, há inúmeras questões e efeitos prático-jurídicos decorrentes do novo Provimento 08/2015, da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo. Certamente, o tema será paulatinamente amadurecido pelos notários, fixando-se diretivas para a homogeneização da atuação notarial em casos tais. Certeza, apenas, há uma. O tema ora normatizado é de extrema importância para atividade notarial, especialmente em razão da dinamização dos serviços extrajudiciais prestados à sociedade, longe de ser questão de lana-caprina.    

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