Cartório: Uma Questão de Terminologia

 “Cartório”: Uma Questão de Terminologia

 

Por Moacyr Petrocelli

 

A palavra “cartório”, de boa origem latina,1 necessita ser contextualizada com o plexo normativo que regula, contemporaneamente, a atividade notarial e registral no Brasil. Serão apresentados a seguir alguns motivos pelos quais se deve repensar a utilização desta famosa expressão.

Em primeiro lugar, quando alguém se refere, por exemplo, que vai ao “Cartório de Notas”, em realidade, o que se diz remete à ideia de espaço físico, isto é, o prédio em que o tabelião de notas exerce suas atividades. Em uma comparação didática, seria como se referir ao fórum de determinada Comarca, ou seja, o espaço físico em que os juízes e serventuários da Justiça exercem suas atividades. 2

Em segundo lugar, a expressão “cartório” remete, ainda que reflexamente, a um perfil histórico da atividade notarial e registral completamente divorciado de sua atual formatação constitucional – mas que, infelizmente, ainda se encontra na retina dos leigos – em que os cartórios eram transmitidos hereditariamente de ascendentes para descendentes. Portanto, remete a um defasado regime de “capitanias hereditárias” que não mais subsiste no novel cenário constitucional. Aqui, como sabido, a Constituição Cidadã, oportunamente, consagrou o ingresso na atividade da forma mais democrática possível, qual seja, através da aprovação em concurso público de provas e títulos.

Em terceiro lugar, mas não menos importante, não mais existem cartórios com personalidade jurídica própria, distinta da pessoa física do delegado da função notarial e de registros. Até mesmo quando há vacância em determinada serventia extrajudicial haverá um substituto provisoriamente designado (“interino”) para responder pelo expediente até a concretização de nova outorga. Em palavras mais simples, o que existe para o direito, são os delegatários, ou seja, aquelas pessoas físicas que exercem a atividade notarial e registral.3

Frise-se, entrementes, que apesar da hodierna impropriedade técnica da referência à atividade notarial e registral, a expressão cartório continua sendo empregada no dia-a-dia tanto pelos leigos, como pelos operadores do direito, até por tradição de assim se referir à atividade extrajudicial. Sem dúvida, a utilização dessa expressão é uma reminiscência histórica difícil de ser deixada para trás no Brasil. Todavia, cientificamente, como demonstrado, o correto seria o desapego desta terminologia.

Registre-se, aliás, que a intenção aqui não é a de condenar a utilização do vocábulo “cartório”, mas, apenas, sugerir o emprego de terminologias mais adequadas que se mostrem contextualizadas ao novo regime jurídico ao qual se submetem notários e registradores.

A propósito, para ressaltar a importância da correta designação dos profissionais da atividade notarial e de registros públicos, Leonardo Brandelli traz um relato relevante: “Para que um profissional seja valorizado e valorizar-se é preciso, antes de mais nada, que tenha uma designação. É fato pitoresco, mas até hoje muitas pessoas não sabem quem é o titular da função notarial: chegam ao tabelionato reclamando pelo escrivão, pelo oficial, oficial maior, pelo dono, mas raramente pelo tabelião ou notário. O que era grave, porém, é que no mundo jurídico havia desconhecimento acerca do titular da função notarial, existindo normas que a ele se referiam como escrivão ou oficial, e, neste ponto, a nova lei deu o norte correto: o profissional delegado da função notarial é o notário ou tabelião”. 4

Por tudo isso, deve-se dar prioridade pela referência às pessoas dos próprios delegatários (tabeliães ou notários; oficiais de registro ou registradores) ou, em último caso, reportar-se diretamente às especialidades das serventias extrajudiciais (Tabelionato de Notas, Tabelionato de Protesto, Registro Civil das Pessoas Naturais, Registro de Imóveis etc.).

 

 

Referências

1. Sérgio Jacomino em precioso estudo sobre terminologia da palavra “cartório” nos brinda com seu conhecimento: “A conhecida palavra portuguesa cartório finca raízes em boa fonte latina. Na idade média, os importantes documentos notariais, alguns apógrafos, outros originais, eram conglomerados em coleções denominadas ‘cartulários’ – donde cartários, do baixo latim ‘chartulatium’, de ‘chartula’, que vem de nos dar a belíssima cartório. De pequenas coleções depositadas em igrejas, mitras, mosteiros, arquivos reais etc., muitas vezes em pequenos arquivos ou escritórios, a palavra sofre mutações e chega, em plena maturidade, à denominação da complexa instituição encarregada do registro público, garantindo a publicidade, eficácia, autenticidade, segurança dos atos e negócios jurídicos (in Cartório – uma bela palavra. Pequena incursão etimológica: digressão destinada ao I Curso de Introdução promovido pela Escola de Auxiliares e Escreventes da Uniregistral – Universidade Corporativa do Registro de Imóveis, em parceria com a Academia Paulista de Direito Registral, realizado em 5.8.2013, em São Paulo, nas dependências da Biblioteca Medicina Animae – p. 1)

 

2. “Fórum” não tem o mesmo significado jurídico de “foro”, que, para a lei processual civil, significa Comarca ou Subseção Judiciária. Quando se menciona lei processual civil, leia-se: Código de Processo Civil, pois algumas Leis de Organizações Judiciárias estaduais atribuem outro conteúdo a esta expressão.

 

3. Tanto é assim que a jurisprudência dos Tribunais brasileiros volta e meia tem se manifestado pela ilegitimidade de parte das serventias extrajudiciais em ação judicial. Cite-se, verbi gratia: “Consoante as regras do art. 22 da Lei 8.935/94 e do art. 38 da Lei n.º 9.492/97, a responsabilidade civil por dano decorrente da má prestação de serviço cartorário é pessoal do titular da serventia à época do fato, em razão da delegação do serviço que lhe é conferida pelo Poder Público em seu nome. Os cartórios ou serventias não possuem legitimidade para figurar no pólo passivo de demanda indenizatória, pois são desprovidos de personalidade jurídica e judiciária, representando, apenas, o espaço físico onde é exercida a função pública delegada consistente na atividade notarial ou registral. Doutrina e jurisprudência acerca do tema, especialmente precedentes específicos desta Corte” (Superior Tribunal de Justiça – REsp 1.177.372/RJ, 3ª T., Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 28.06.2011).

 

4. BRANDELLI, Leonardo. Teoria geral do direito notarial. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 49.

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