Documento falso e responsabilidade civil (final)

Hércules Benício, contudo, citando José Renato Nalini, vai em direção contrária. Para ele, a partir da Constituição Federal de 1988, desde logo, pode-se inferir que quis o constituinte originário conceder maior autonomia a notários e registradores. Acompanhou essa autonomia “respectivo acréscimo de responsabilidade, tanto é que o art. 21 do Estatuto de Notários e Registradores (Lei 8.935/1994) refere-se à responsabilidade exclusiva do titular. Conforme leciona Nalini (1997, p. 81-83), a partir da vigência do art. 236 da CF de 1988, houve substancial mudança do regime das serventias extrajudiciais não-oficializadas. Registrador e notário exercem função pública, mas ‘em seu próprio interesse’, e sem estarem ligados ao Estado por uma relação hierárquica; por isso, devem ser os únicos responsáveis pelos danos ‘provocados por suas próprias omissões (e ações) profissionais, com todo seu patrimônio pessoal’, como se existisse uma total identidade entre a pessoa do titular e o ofício que administra. A Constituição é por demais clara ao determinar o regime de delegação para o desempenho de serviços notariais e de registro.” (Grifos nossos.)

De mais a mais, bem anda o notável Celso Antônio Bandeira de Mello ao defender que descabe responsabilizar o Estado se, nada obstante atuação compatível com as possibilidades de um serviço normalmente organizado e eficiente, não lhe era possível nem razoavelmente exigível impedir o evento danoso gerado por força (humana ou material) alheia.

“Ademais, solução diversa conduziria a absurdos. É que, em princípio, cumpre ao Estado prover a todos os interesses da coletividade. Ante qualquer evento lesivo causado por terceiro, como um assalto em via pública, uma enchente qualquer, uma agressão sofrida em local público, o lesado poderia sempre argüir que o ‘serviço não funcionou’. A admitir-se responsabilidade objetiva nestas hipóteses, o Estado estaria erigido em segurador universal!”

E a responsabilidade do notário?

Do quanto já exposto, seria subjetiva a responsabilidade deste, ou seja, dependeria de averiguação de culpa lato sensu, que inclui a verificação da intencionalidade do agente no erro perpetrado.

Contudo, milita a favor tanto do Estado quanto do notário a existência de uma falsidade documental refinada, bem elaborada (não grosseira, somente perceptível com análise técnica).

A aparência irrefutável de idoneidade dos documentos falsos utilizados para a lavratura da escritura pública de venda e compra, desde que observados todos os requisitos procedimentais previstos em lei para o ato notarial, afasta a responsabilidade do tabelião e, por conseqüência, a aplicação do disposto no art. 22 da Lei n. 8.935/1994.

Considerar como desidiosa a ação do tabelião, tendo em vista ser falsa a identidade apresentada pela parte para lavratura da escritura pública, é desconhecer, absurdamente, que aquele profissional (operador do direito, precipuamente, a partir da Constituição de 88) não possui condições técnicas, muito menos obrigação normativa, de certificar que a identidade que lhe é apresentada é falsa, se tal não for facilmente perceptível. Não configurada culpa, portanto, não pode jamais ser responsabilizado.

Como poderia o notário responder subjetivamente (ou o Estado, objetivamente) pela lavratura de um ato com suporte em documento contendo todas as características de autêntico e verdadeiro?

Otávio Guilherme Margarida socorre-nos, na conclusão destas linhas: “Da mesma forma, pode o magistrado ser responsabilizado se uma pessoa lhe apresentar uma identidade falsa, com todas as características de autenticidade, e comparecer em audiência, firmar acordo e, conseqüentemente causar prejuízos a terceiro? Entendo que não! Em ambos os casos apresentados, nem tabelião, nem magistrado agem com desídia, mas são, sim, induzidos a erro pela ação de pessoas de má-fé. Tabelião e magistrado não são peritos, não têm obrigação e conhecimento técnico e cientifico para auferir se o documento que lhes foi apresentado é verdadeiro ou falso.” (Adaptamos. Grifamos.)

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Este post apresenta conclusão de resumo de artigo nosso publicado na revista Prática Jurídica. Analisa-se a responsabilidade civil do notário em decorrência da lavratura de ato lastreado em documento falso. As notas foram excluídas – texto longo entedia, por vezes, o apressado leitor.

 

 

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EXIBINDO 0 COMENTÁRIOS

  1. Manoel Valente disse:

    Parabéns pelo artigo. Domínio de ideias e conteúdos.

  2. Roberto Mizael disse:

    Minha tese de mestrado tem como tema central a responsabilidade civil. Gostei do texto.

  3. Ricardo Gentil Marcon Júnior disse:

    Parabéns pelo texto, colocou em poucas linhas o que penso, os Doutrinadores que tem opinião contraria ratificam a omissão da União , Estado e municípios, quanto a suas responsabilidades.

  4. Otavio Margarida disse:

    Lafaiete, parabéns pelo artigo – resumo. Gostaria muito de le-lo na integra. Não encontrei o site da revista Pratica Juridica. Podes me encaminhar por e-mail? e obrigado pela citação ao final. Grande abraço, Otávio

  5. Lafaiete Luiz disse:

    Caro Otavio Margarida, encaminharei o artigo por e-mail. Agradeço a fineza de suas palavras e dos demais leitores deste festejado blog; elas nos estimulam a prosseguir. Esclareço, por oportuno, que a revista Prática Jurídica, da Editora Consulex, nao tem o conteúdo publicado on line.

  6. Luciano Gontijo disse:

    De qualquer modo, cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Não custa o profissional se municiar de informações por meio de cursos na área e de sites como o http://www.fraudes.org (sobre identidade especificamente – http://www.fraudes.org/showpage1.asp?pg=290 ) .

  7. Claudivino Pereira Alves disse:

    Olá Senhor Lafaiete,
    Muito interessante esse artigo. Gostaria de lê-lo na íntegra. Se possível, mande-me uma cópia por e-mail.
    Claudivino

  8. Tulio disse:

    Prezado Lafaiete, se possível, gostaria que você me indicasse algumas referências bibliográficas acerca deste assunto, pois é justamente o tema da minha monografia “Responsabilidade civil dos Tabeliães”.
    A propósito, muito bem elaborado seu artigo, parabéns.
    Desde já agradeço,
    Tulio.

  9. Reinaldo de Oliveira Caldas disse:

    Olá, prezado Lafaiete. Aceite meus cumprimentos pela qualidade do texto e pela escolha do tema. Também gostaria de ler na íntegra o artigo, dada a relevância do tema. Peço me mande por mail, se possível.
    Att,
    Reinaldo

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