UMA PROFISSÃO PARA QUEM NÃO TEM

Fui consultado por um colega sobre a correta profissão do outorgante vendedor, numa escritura pública, porque declarou não ter ocupação nenhuma.

Pensou em nomeá-lo desocupado, mas a expressão pareceu atentar à dignidade da pessoa humana.

No início do meu aprendizado em cartório, ainda no século passado, quem não tivesse uma profissão era definido como jornaleiro, que não servia para designar aquele que vendesse ou entregasse jornal, mas quem prestasse trabalhos eventuais.

Na linguagem popular, a expressão jornaleiro representa quem trabalha em troca de uma diária (jorna), especialmente o trabalhador rural, enquanto que no dicionário bíblico jornaleiro era o homem que ia livremente laborar todos os dias de trabalho – e assim se distinguia do servo permanente ou escravo (Deuteronômio 24.10), sendo a paga do trabalho feita todos os dias (Livro 19.13 – Deuteronômio 24.14,15 – Jó 7.1,2 – 14.6 – Mateus 20.8).

O sujeito, porém, não era jornaleiro, não vendia jornal, não entregava jornal, não lia jornal, não fazia nada, vivendo às custas da mulher, que trabalhava fora, e em casa.

Aposentado também não era, além do que aposentado não é profissão, é estado.

Aliás, tenho percebido equívoco, em alguns casos, na qualificação dos intervenientes de atos notariais e de registros, com o uso de expressões como aposentado, para designar a profissão, quando deve ser balconista aposentado, professor aposentado, ou ainda como autônomo, quando o correto é motorista autônomo, marceneiro autônomo, etc.

Foi daí que sugeri ao colega que procurasse a ocupação apropriada ao caso na tabela de profissões, do Ministério da Justiça, que vai de a até z, com o seu respectivo código, iniciando por administrador, código 1, advogado, código 2, passando por termos estranhos como adubados, código 240, vulcanizados, código 909, acabando em zootecnia.

Desempregado, código 487, também não era o caso, porque o sujeito nunca tinha trabalhado. Também não seria bobinado, código 378, até porque não há como se saber o que faz ou deixa de fazer um bobinado.

Mas eis que finalmente o colega deparou-se com o código 825, sem ocupação.

Pronto. Para o governo, a profissão de quem não tem ocupação não é desocupado, é sem ocupação, o que soa menos contundente que desocupado, e parece ser mais politicamente correto. 

Enfim, e como o cliente já estava com pressa de voltar para casa, para ter mais tempo de não fazer nada, o ato foi lavrado com a sua correta qualificação. Ao menos para o Ministério da Justiça.

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  1. Aguiel Moisés Rodrigues disse:

    Perfeito! Didático e divertido! Mas acho que a profissão poderia ser “do lar”. Homem também pode! Abraço!!!!

  2. Tarcisio Alves Ponceano Nunes disse:

    Muito divertido o texto… a melhor parte: “… e como o cliente já estava com pressa de voltar para casa, para ter mais tempo de não fazer nada…”
    Ri alto!

  3. Luís Ramon Alvares disse:

    Muito interessante!! Como sempre, um texto prático e gostoso de ler. Parabéns!! Vou adotar nas escrituras daqui para frente. Abs.

  4. Marla Camilo disse:

    Interessante caso!!! Parabéns!

  5. J. Hildor disse:

    A profissão do Picurrucha – assim a mulher o trata, carinhosamente – também não poderia ser “do lar”, porque quem tem essa profissão trabalha, e muito: cozinha, serve a mesa, lava, passa, arruma a cama, etc.
    E o Picurruchinha – como o mulher o trata, na intimidade – não faz nada. Absolutamente nada. Logo, não pode ser “do lar”.
    É sem ocupação, mesmo.

  6. Surie disse:

    Dr. Hildor,
    Aproveitando o espaço, um imóvel cuja a 1ª e 2ª praças não tiveram licitantes deve ser adjudicado ao exequente e esta adjudicação averbada ou registrada na matrícula do imóvel? Trata-se de uma faculdade ou obrigatoriedade?
    GRATA.

  7. J. Hildor disse:

    Surie, o ato é de registro.
    O registro é uma faculdade, mas quem não registra não é dono.

  8. Jéssica disse:

    Perfeito!!!

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